quarta-feira, 27 de junho de 2012

O poder de investigação do MP

Não parece razoável que tenha sido um desejo do legislador constituinte impedir que o Ministério Público fosse proibido de conduzir inquéritos criminais.
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, na manhã de hoje, importante discussão a respeito dos limites do poder de investigação do Ministério Público (MP). Dois processos sobre o tema estão na pauta da sessão plenária – o Recurso Extraordinário 593727 e o Habeas Corpus 84548. Esse último foi impetrado pela defesa do empresário Sérgio Gomes da Silva, o “Sombra”, acusado de ser o mandante da morte do ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel, em 2002.
Na semana passada, antes de o STF decidir analisar os dois recursos conjuntamente, os ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski votaram contra o poder investigatório do MP no julgamento do recurso extraordinário. Embora Peluso e Lewandowski tenham entendido que, ao conduzir investigações criminais, o Ministério Público estaria avançando sobre a competência das polícias, e violando a Constituição Federal, há fundamentos fortes e razoáveis que permitem concluir em direção oposta.
Não há proibição constitucional para que o MP possa conduzir investigações penais. A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 129, que são funções do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública, na forma da lei, bem como requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. Além de não haver proibição expressa, o mesmo artigo do texto constitucional abre a possibilidade de o MP “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
Além disso, a Constituição Federal não estabelece como privativa da polícia a competência investigatória, pois o artigo 58, em seu parágrafo 3.º, estabelece que as comissões parlamentares de inquérito terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, para que promovam a responsabilidade civil ou criminal dos investigados. Portanto, a Constituição não proíbe o MP de conduzir investigações e ainda estabelece que é possível exercer tal função, pois ela é “compatível com sua finalidade”; além disso, não apresenta a competência investigatória como privativa da polícia.
O texto constitucional também não estabelece, no âmbito da produção dos elementos de acusação, a necessidade de separação entre o órgão investigador e o órgão propositor da ação penal. O que não permite é que um mesmo órgão seja responsável pela investigação e julgamento. Não parece razoável que tenha sido um desejo do legislador constituinte impedir que o MP fosse proibido de conduzir inquéritos criminais.
As atribuições estabelecidas para a polícia e para o MP na Constituição tratam da habitual distribuição de tarefas. Seria contraproducente que o constituinte concedesse somente à polícia a função investigatória, pois limitaria sem razão o poder estatal de punir o cometimento de crimes. A existência de diversos órgãos fiscalizadores – como MP e a Receita Federal, entre outros – permite evitar que crimes complexos, especialmente os ligados à corrupção e enriquecimento ilícito, sejam praticados impunemente.
É de se ressaltar que, quando se trata de crimes de colarinho-branco, o MP tem mostrado maior capacidade técnica e operacional para conduzir investigações, sem que isso represente qualquer demérito para a atividade realizada pela polícia. Esse modelo é, inclusive, adotado por países como Alemanha, França e Espanha. Não foi por outra razão que o Brasil já assinou diversas convenções que estabelecem a necessidade de ampla participação investigatória do MP, incluindo as convenções de Palermo (combate ao crime organizado), de Mérida (corrupção) e das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.
Todos os fatores já analisados permitem concluir que o poder de investigação do MP não é inconstitucional e precisa ser mantido. Caso o STF decida, na sessão plenária de hoje, pela impossibilidade de o MP conduzir investigações penais sem participação de autoridade policial, a sociedade perderá um importante aliado no combate à criminalidade e à corrupção.



PEC 37 — A Emenda da Insensatez e os pés de Curupira

Apresentando a Nau.Para quem não sabe, lembro. A Nau dos Insensatos é uma alegoria que descreve o mundo e seus habitantes como uma nau, cujos passageiros nauseabundos não sabem e nem se importam para onde estão indo. Vejam: eles não se importam! Na verdade, a Nau dos Insensatos (Das Narrenschiff) foi o primeiro best-seller da história, fora a Bíblia. Escrito em 1494 por Sebastian Brant, é um relato ácido da sociedade de então. Cada um dos 112 capítulos tem um endereço. Fala das falácias da Justiça, das injustiças da Igreja, a patifaria, os maus costumes, a vulgaridade dos nobres... Brant era formado em Direito. Sabia das vicissitudes das leis. E do “sistema”. Dividido em 112 capítulos curtos, cada qual dedicado a um tipo de louco ou insensato, o livro proporciona uma leitura provocadora e divertida.
Pois olhando a PEC 37, que visa a detonar/implodir o poder investigatório do Ministério Público, o único livro ao qual posso me remeter é a Nau dos Insensatos. É realmente espantoso que essa PEC navegue por aí. É uma insensatez.
Não iria escrever sobre esse assunto. Tenho um livro sobre isso, escrito em parceria com Luciano Feldens (Crime e Constituição, Ed. Forense), lá pelos idos de 2003-4, que chegou a sua terceira edição. Há decisões do STF. E do STJ. Há boa doutrina também. De todo modo, diante do quase-silêncio da comunidade jurídica sobre o perigoso avanço da PEC da Insensatez, tive que voltar ao assunto. E o faço agora. Na forma da Constituição.


Leia na íntegra aqui.

Filtros recursais: celeridade ou limitação da Justiça?

Na última década, o legislador tem criado mecanismos para evitar a subida de processos aos tribunais superiores. A constitucionalidade deles, porém, ainda é questionada.
Sob o argumento de que grande parte dos recursos tem o mesmo fundamento para apreciação e caráter meramente protelatório, na última década o legislador tem criado uma série de filtros para impedir a subida de processos aos tribunais superiores. O uso destes mecanismos têm mostrado resultados positivos, do ponto de vista pragmático, no sentido de desafogar os tribunais. Por outro lado, os institutos que vem sendo criados têm tido a constitucionalidade questionada, segundo parte de operadores do Direito e doutrinadores ouvidos pelo caderno Justiça & Direito.
“Os processos estão diminuindo, mas qual é o outro lado desta moeda?” questiona o mestre em direito processual Flávio Quinaud Pedron. Para Pedron, os filtros recursais afrontam o principio constitucional do devido processo legal em suas três partes: isonomia, ampla defesa e contraditório, para ele entendido como a “liberdade argumentativa”. “Os juízes têm o dever de mostrar em suas fundamentações que cada argumento jurídico suscitado foi considerado”, afirma.
Pedron questiona também a forma com que são definidos os processos considerados paradigmas de julgamento em bloco dos recursos. “A escolha muitas vezes é feita pela ordem de chegada, aletoriamente ou em razão quantitativa, como valor da causa ou tamanho da pena, em detrimento da importância política ou a controvérsia jurídica. Cria-se a ideia de que existam situações mais ou menos importantes, que o seu direito é mais importante que o meu”, compara.
A favor do uso moderado dos filtros “dentro de uma responsabilidade que não afete a segurança jurídica”, o presidente da seccional do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR), José Lúcio Glomb, diz acreditar que o investimento em modernização do aparelho do Judiciário é uma demanda mais urgente e prioritária. “Acho que o Judiciário poderia ser mais ágil, mas sem colocar em risco uma das garantias fundamentais do cidadão e correr o risco de gerar danos irreparáveis”, diz.

Celeridade
Os filtros recursais partem do principio que, no mérito, tudo o que poderia servir como fundamento de convencimento dos ministros dos tribunais superiores já está exposto nos autos. A despeito das críticas, eles têm representado um avanço significativo no sentido de desafogar os tribunais superiores.
O uso de filtros como a súmula vinculante e a repercussão geral, de acordo com o último levantamento, feito pela Fundação Getúlio Vargas, mostrou que, entre os anos de 2007 e 2010, o número de processos caiu de mais de 110 mil, ao ano, para cerca de 30 mil. Apesar da queda, o número de processos ainda é considerado alto. A Suprema Corte Norte-Americana, por exemplo, recebe cerca de 7 mil processos por ano e julga aproximadamente 100.
Futuro
Para o advogado Gustavo Gomes, há uma tendência gradativa de que cada vez mais se faça mais filtragens de recursos. “Temos de acreditar no Judiciário, que, por sua vez, precisa honrar a grande responsabilidade que lhe é outorgada”.
Para Gomes, no entanto, a aprovação da PEC dos Recursos talvez “seja um passo maior que as pernas” “É melhor usar os mecanismos que já existem. Essa execução provisória pode gerar danos irreparáveis. Cabe ao juiz ter tempo e reponsabilidade para dar o mesmo tratamento para cada caso”, defende.

Leia na íntegra aqui.

O ministro que não quer virar quadro

José Paulo Sepúlveda Pertence, ministro aposentado do STF

O esforço para não ser apenas um quadro na parede faz com que, mesmo após a aposentadoria, o jurista José Paulo Sepúlveda Pertence se dedique a uma “advocacia intensa”. Sua carreira teve início com a graduação em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Mais tarde foi nomeado procurador-geral da República durante o governo de José Sarney. Em 1989, Sepúlveda tornou-se ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo atuado também como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ele foi um dos convidados de honra do III Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, que ocorreu no último mês de maio em Curitiba. Sepúlveda conversou com a reportagem da Gazeta do Povo durante o evento e falou sobre o ativismo judiciário. De acordo com ele, é normal que, em certos momentos, o Judiciário tome a frente, quando provocado, e ocupe espaços espaços vazios deixados pelos Legislativo. Leias os principais trechos da entrevista.


domingo, 3 de junho de 2012

O país que não sabe fazer leis

Oito em cada dez leis criadas no Brasil e analisadas pelo STF, em 2011, foram consideradas em desacordo com a Constituição. O Paraná aparece em 3º, entre os estados com mais problemas.
Se existem questionamentos sobre a utilidade e a relevância de parte das leis criadas nas casas legislativas Brasil afora, não há dúvidas em relação à grande quantidade delas que afrontam à Constituição Federal. No ano passado, 83% das leis examinadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) foram consideradas em desacordo com a Constituição. O percentual foi apurado em um levantamento, publicado no Anuário da Justiça Brasil 2012, em maio, que analisou os resultados de julgamentos no STF nas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e nas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs).
Segundo o levantamento, o maior índice de inconstitucionalidade foi verificado nas leis aprovadas pelas assembleias legislativas dos estados. Metade das leis incompatíveis com a Carta vêm de cinco dos 20 estados que tiveram questionamentos sobre suas leis no STF. Um deles é o Paraná, que divide a terceira posição com Santa Catarina. O estado em pior situação é o Rio de Janeiro, que teve todas as 13 leis julgadas pelo Supremo consideradas inconstitucionais.
O presidente do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC), Zulmar Fachin, considera que não é de se espantar que sejam criadas leis inconstitucionais, já que, até no STF, os ministros têm dúvidas e discordam. O problema, segundo ele, é justamente a quantidade de vezes que leis deste tipo surgem. “É um percentual exagerado, quase absurdo”, diz.
Uma das principais motivações que geram a inconstitucionalidade, de acordo com estudo, é o fato de os legisladores criarem leis para âmbito que não lhes competem. Isto é resultado, segundo especialistas, principalmente, do amplo conjunto de atribuições da União. Fachin ressalta que uma das questões mais difíceis para o Estado, que adota a forma federativa, é estabelecer a autonomia dos seus membros e as suas competências.
Ana Paula Barcellos, professora de Direito Constitu­cional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), observa que há uma tendência de os estados não tentarem novamente elaborar leis sobre temas que já foram considerados inconstitucionais para o âmbito de sua competência. Por outro lado, o próprio STF pode mudar de opinião, lembra ela. Ana Paula recorda que a corte já foi muito mais restritiva em relação a leis estaduais em matéria de direitos consumidor, por exemplo.
Juristas
Diante deste quadro, que revela que oito em cada dez leis avaliadas pelo STF afrontam à Constituição, surge a pergunta sobre como é possível que essas leis inconstitucionais entrem em vigor, após passar por um processo minucioso de elaboração pelo Legislativo e pelo Executivo. Por causa deste tipo de questionamento, é comum que alguns especialistas defendam que as leis deveriam ser elaboradas apenas por quem entende de Direito.
Ana Paula sustenta, no entanto, que o aspecto democrático deve ser preservado e os legisladores, sejam leigos ou conhecedores de Direito, devem ser escolhidos pelos cidadãos. “Imaginar que elaboração de leis é uma atividade técnica e que seria melhor desempenhada por um corpo técnico é um equivoco”, argumenta a professora da UERJ, que, do mesmo modo que Fachin, chama atenção para o fato de que até no STF há votações apertadas. “Se tivéssemos os ministros do STF elaborando as leis, nem todos estariam de acordo”.
Fachin destaca que, a medida em que o processo legislativo prioriza a técnica, pode comprometer a legitimidade política. Por outro lado, quando se tem como foco apenas a política, os aspectos técnicos podem ser violados. “O desafio é conciliar, manter a legitimidade da representação política e buscar aperfeiçoar a perspectiva técnica”.
Para a professora especialista em Direito Constitucional do Centro Universitário de Curitiba (UniCuritiba) Viviane Séllos, uma saída seria exigir que os assessores dos legisladores tivessem conhecimento jurídico para interpretar a Constituição e domínio de redação legislativa. “Não só a formação em Direito é importante. Sociólogos, cientistas políticos, ambientalistas, lideranças sociais devem ir ao Legislativo e a assessoria deve ser dividida em setores”, opina a professora.
Política
Comissões deveriam controlar a constitucionalidade
Nas casas legislativas, antes de serem levados ao plenário, os projetos de lei passam obrigatoriamente pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que tem a função justamente de analisar a constitucionalidade do projeto. Mas este filtro não é tão rígido, como deveria. De acordo com o Anuário da Justiça, em 2011, por exemplo, todos os 376 projetos de lei apresentados na CCJ da Câmara dos Deputados foram aprovados.
Não são somente os interesses jurídicos que regem as decisões das CCJs, alertam os especialistas. A professora de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ana Paula Barcellos lembra que as comissões também são órgãos políticos. “Se houver interesse de elaborar uma norma sobre determinada matéria, vai ser muito difícil a CCJ ter uma postura imparcial ou mais técnica. Não é muito realista esperar que ela cumpra este papel”.
Zulmar Fachin, doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), sustenta que, além da CCJ, as inconstitucionalidades podem ser apontadas no plenário por outros parlamentares que não são membros da comissão. Eles podem fazer o controle constitucional simplesmente votando contra os projetos, lembra Fachin.





Processo legislativo
Curso de Direito Constitucional, de Zulmar Fachin (Editora Forense), e professora de Direito Constitucional Viviane Séllos.


Durante o processo de criação de uma lei não é só a pertinência do projeto que é avaliada. O controle preventivo de constitucionalidade também deve ocorrer. Confira as fases de elaboração de uma de lei ordinária:

1. Iniciativa
Fase de elaboração do projeto de lei (PL). Apenas pessoas autorizadas por lei podem ser autoras de PLs, como os membros do Legislativo, o representante do Poder Executivo ou mesmo um cidadão. Neste último caso, é preciso que o PL, antes ir para as casas legislativas, passe em forma de abaixo assinado por pelo menos cinco estados brasileiro, nos quais é preciso atingir, no mínimo, 0,3% do eleitorado local e o total de assinaturas deve chegar 1% do eleitorado nacional.
2. Discussão
Nas casas legislativas, o PL passa por comissões que vão lapidar o projeto, debatê-lo e analisar sua constitucionalidade, principalmente nas comissões de constituição e justiça.
3. Votação no Legislativo
O projeto é levado ao plenário, para que os parlamentares se manifestem pela aprovação ou não. Todos os que têm poder de voto devem analisar a constitucionalidade da norma proposta que, caso seja considerada incompatível com a Carta, será nula. Após o resultado da votação, o projeto pode ser: rejeitado e ir para o arquivo; aprovado e seguir para a sanção do chefe do Executivo; ou aprovado parcialmente e então serão necessárias mudanças no texto.
4. Sanção
O chefe do Poder Executivo tem o poder de sancionar ou vetar o projeto, e pode, assim, fazer o controle constitucional. É possível, ainda, sancionar parcialmente o projeto, caso apenas algumas partes sejam consideradas inconstitucionais.

5. Promulgação
Feita pelo chefe do Executivo. É a declaração formal da existência da lei. A partir deste momento, o projeto passa a ser lei e não se fala mais em prevenção de inconstitucionalidade, mas em controle repressivo para analisar a constitucionalidade da lei já existente.
6.Publicação
A lei é levada ao conhecimento de todos por meio deste ato, que a torna obrigatória e passível de ser exigida. Quando não é definida a data em que lei

Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/conteudo.phtml?tl=1&id=1260549&tit=O-pais-que-nao-sabe-fazer-leis. Acesso em: 03 jun. 2012.

Direito e política: a tênue fronteira

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ocupado um espaço relevante no cenário político e no imaginário social. A centralidade da Corte e, de certa forma, do Judiciário como um todo não é peculiaridade do Brasil. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, tribunais constitucionais tornaram-se protagonistas de discussões políticas ou morais em temas controvertidos. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, em muitas democracias verificou-se o avanço da justiça constitucional sobre o campo da política majoritária, aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular.
Os exemplos são numerosos e inequívocos. Nos Estados Unidos, a eleição de 2000 foi decidida pela Suprema Corte. Em Israel, foi também a Suprema Corte que deu a última palavra sobre a construção de um muro na divisa com o território palestino. Na França, o Conselho Constitucional legitimou a proibição de burca. Esses precedentes ilustram a fluidez da fronteira entre política e Direito no mundo contemporâneo.
Ainda assim, o caso brasileiro é especial, pela extensão e pelo volume. Apenas nos últimos 12 meses, o STF decidiu acerca de uniões homoafetivas, interrupção da gestação de fetos anencéfalos e cotas raciais. Anteriormente, decidira sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, nepotismo e demarcação de terras indígenas. Em breve, julgará o mensalão. Tudo potencializado pela transmissão ao vivo dos julgamentos pela TV Justiça. Embora seja possível apontar inconveniências nessa deliberação diante das câmeras, os ganhos são maiores que as perdas. A visibilidade pública contribui para a transparência, para o controle social e, em última análise, para a democracia. TV Justiça só existe no Brasil, não é jabuticaba e é muito boa.
A ascensão do Judiciário deu lugar a uma crescente judicialização da vida cotidiana e a alguns momentos de ativismo judicial. Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral são decididas pelo Judiciário. Trata-se de uma transferência de poder das instâncias tradicionais, Executivo e Legislativo, para juízes e tribunais. Há causas diversas para o fenômeno. A primeira é o reconhecimento de que um Judiciário forte e independente é imprescindível para a proteção dos direitos fundamentais. A segunda envolve uma certa desilusão com a política majoritária. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário decida questões controvertidas, como aborto e direitos dos homossexuais. No Brasil, o fenômeno assume uma proporção maior em razão de a Constituição cuidar de uma impressionante quantidade de temas. Incluir uma matéria na Constituição significa, de certa forma, retirá-la da política e trazê-la para o Direito, permitindo a judicialização. A esse contexto ainda se soma o número elevado de pessoas e entidades que podem propor ações diretas perante o STF.
A judicialização ampla, portanto, é um fato, uma circunstância decorrente do desenho institucional brasileiro, e não uma opção política do Judiciário. Fenômeno diverso, embora próximo, é o ativismo judicial. O ativismo é uma atitude, é a deliberada expansão do papel do Judiciário, mediante o uso da interpretação constitucional para suprir lacunas, sanar omissões legislativas ou determinar políticas públicas, quando ausentes ou ineficientes. Exemplos de decisões ativistas envolveram a exigência de fidelidade partidária e a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Todos esses julgamentos atenderam a demandas sociais não satisfeitas pelo Poder Legislativo. Registre-se, todavia, que, apesar de sua importância e visibilidade, tais decisões ativistas representam antes a exceção do que a regra. A decisão do STF sobre as pesquisas com células-tronco, ao contrário do que muitas vezes se afirma, é um exemplo de autocontenção. O Tribunal se limitou a considerar constitucional a lei editada pelo Congresso.
Inúmeras críticas têm sido dirigidas a essa expansão do papel do Judiciário. A primeira delas é de natureza política: magistrados não são eleitos e, por essa razão, não deveriam poder sobrepor sua vontade à dos agentes escolhidos pelo povo. A segunda é uma crítica ideológica: o Judiciário seria um espaço conservador, de preservação de elites contra os processos democráticos majoritários. Uma terceira crítica diz respeito à capacidade institucional do Judiciário, que seria preparado para decidir casos específicos, e não para avaliar o efeito sistêmico de decisões que repercutem sobre políticas públicas gerais. E, por fim, a judicialização reduziria a possibilidade de participação da sociedade como um todo, por excluir os que não têm acesso aos tribunais.
Todas essas críticas merecem reflexão, mas podem ser respondidas. Em primeiro lugar, uma democracia não é feita apenas da vontade das maiorias, mas também da preservação dos direitos fundamentais de todos. Cabe ao Judiciário defendê-los. Em segundo lugar, é possível sustentar que, na atualidade brasileira, o STF está à esquerda do Congresso Nacional. Quando o Tribunal decidiu regulamentar o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, as classes empresariais acorreram ao Congresso, pedindo urgência na aprovação da lei que tardava. Ninguém duvidava que o STF seria mais protetor dos trabalhadores que o legislador. Quanto à capacidade institucional, juízes e tribunais devem ser autocontidos e deferentes aos outros Poderes em questões técnicas complexas, como a transposição de rios ou demarcação de terras indígenas. Por fim, a judicialização jamais deverá substituir a política, nem pode ser o meio ordinário de resolver as grandes questões. Ao contrário. O Judiciário só deve interferir quando a política falha.
Em muitas situações, em lugar de se limitar a aplicar a lei já existente, o juiz se vê na necessidade de agir em substituição ao legislador. A despeito de algum grau de subversão ao princípio de separação de Poderes, trata-se de uma inevitabilidade, a ser debitada à complexidade e ao pluralismo da vida contemporânea. Por exemplo: até 1988, havia uma única forma de constituir família legítima, pelo casamento. Com a nova Constituição, passaram a existir três possibilidades: além da família resultante do casamento, há também a da união estável e a família monoparental (a mãe ou o pai e seus filhos). Todavia, diante da realidade, representada pelas uniões homoafetivas, o STF, na ausência de lei específica, reconheceu e disciplinou uma quarta forma de família.
Juízes e tribunais também precisam desempenhar uma atividade mais criativa – menos técnica e mais política – nas inúmeras situações de colisão entre normas constitucionais. Tome-se como exemplo a disputa judicial envolvendo a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia. O governo invocou, para legitimar sua decisão, a norma constitucional que consagra o desenvolvimento econômico como um dos objetivos fundamentais da República. Do outro lado, ambientalistas fundamentavam sua oposição na disposição constitucional que cuida da proteção ao meio ambiente. Pois bem: o juiz não pode decidir que os dois lados têm razão. Ele tem de resolver a disputa, criando a norma que considera adequada para o caso concreto. Isso aumenta seu poder individual e reduz a objetividade e previsibilidade do Direito. Mas a culpa não é do juiz. A vida é que ficou mais complicada, impedindo o legislador de prever soluções abstratas para todas as situações.
Conclui-se que o Judiciário se expande, sobretudo, nas situações em que o Legislativo não pode, não quer ou não consegue atuar. Aqui se chega ao ponto crucial: o problema brasileiro atual não é excesso de judicialização, mas a escassez de boa política. Imaginar que a solução esteja em restringir o papel do Judiciário é assustar-se com a assombração errada. Do que o país precisa é restaurar a dignidade da política, superando o descrédito da sociedade civil, particularmente em relação ao Legislativo. É hora de diminuir o peso do dinheiro, dar autenticidade aos partidos e atrair vocações. Enquanto não vier a reforma política, o STF desempenhará os dois papéis que o trouxeram até aqui: o contramajoritário, que estabelece limites às maiorias; e o representativo, que responde às demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas tradicionais.
Há uma última questão: a relação do STF com a opinião pública. Muitas vezes, a decisão justa não é a mais popular. E o populismo judicial é tão ruim quanto qualquer outro. Um Tribunal não pode decidir pensando nas manchetes. Sem cair na armadilha, o STF tem servido bem à democracia brasileira.

Luís Roberto Barroso - professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj. Mestre pela Universidade de Yale. Doutor e livre-docente pela Uerj. Visiting scholar na Universidade de Harvard.


Fonte: Revista Epóca - ed. 733