domingo, 1 de setembro de 2013

Constitucionalizar a felicidade é cura ou placebo?

Pesquisando quais obras de Ronald Dworkin estavam disponíveis na biblioteca do Supremo Tribunal Federal, deparei-me com uma intitulada A infelicidade é necessária[1]. De acordo com esse artigo, temos, atualmente, uma grande necessidade de sermos felizes, ainda que se trate de felicidade artificial, à base de medicamentos.
O texto não é do Ronald Dworkin jurista, professor da NYU falecido recentemente, mas de um homônimo, médico e cientista político — coincidência que talvez tenha sido o motivo pelo qual acabou sendo classificado pela biblioteca. Mesmo assim, seus argumentos fizeram-me pensar sobre um direito que paulatinamente ganha adeptos no constitucionalismo brasileiro: o direito à busca da felicidade.
Sua origem remonta à Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, e foi incluído na Declaração de Independência como direito inalienável do cidadão[2]. Na tradição jurídico-constitucional americana, o direito à busca da felicidade — ou right to pursuit of happiness, como é chamado em inglês — tem vinculação direta com o liberalismo e é um componente a restringir a atuação do Estado. Os Founding Fathers teriam sido precisos ao falar em direito à busca da felicidade, e não em direito à felicidade. Isso significa que o homem tem direito a tomar as ações que acredita serem necessárias para alcançar sua felicidade — e não que outros devam fazê-lo feliz[3].
Por aqui, tramitam, no Congresso Nacional, duas propostas de emenda à Constituição para alterar o artigo 6º e determinar que os direitos sociais ali elencados são essenciais à busca da felicidade. Assim, essa seria possível caso fossem concretizados os direitos à “educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à infância e a assistência aos desamparados”[4].
De acordo com as justificativas apresentadas para essas emendas, pretende-se alcançar não o aspecto subjetivo da busca à felicidade, que tem relação com os sentimentos e o estado de espírito de cada indivíduo, mas seu aspecto objetivo, isto é, a felicidade coletiva, que seria plenamente tutelável pela legislação. A justificativa da PEC proposta no Senado define que “há felicidade coletiva quando são adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade, ou seja, justamente os direitos sociais — uma sociedade mais feliz é uma sociedade mais bem desenvolvida, em que todos tenham acesso aos básicos serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer, dentre outros”.
Não é difícil perceber que a probabilidade de que tenhamos legiões de pessoas infelizes é alta. Se a Constituição Federal prescreve nove direitos sociais como essenciais à obtenção da felicidade e, como amplamente sabido, o estado social brasileiro deixa bastante a desejar, qual o motivo de sua inserção no texto constitucional?
Incluir o simpático direito à busca da felicidade na Constituição nada mais é do que um efeito simbólico, um incentivo à felicidade que os brasileiros pensam que deveriam ter. E é muito mais por efeito alegórico, como reforçador de outros direitos fundamentais, que encontramos o direito à busca da felicidade em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal.
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132[5], que tratou do tema da união homoafetiva, o ministro Ayres Britto comentou que:
Felicidade é um estado de espírito consequente. Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do artigo 1º da CF),e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De autoestima no mais elevado ponto da consciência. Autoestima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente norma da desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 1776) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem serealizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente”. (Grifos nossos).
O ministro então concluiu: “nós daremos a esse segmento de nobres brasileiros (os homossexuais) mais do que um projeto de vida, um projeto de felicidade”.
Esses argumentos evidenciam que é essencial garantir as condições para que os indivíduos tenham as mesmas chances, proteções e garantias. No mesmo sentido, o ministro Marco Aurélio ressaltou: “ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie”.
O ministro Celso de Mello é, até o momento, o membro da Corte que mais mencionou o direito à busca da felicidade em suas decisões. No julgamento da ADPF 132, definiu que esse direito é “verdadeiro postulado constitucional implícito, como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.” Admite, assim, que o direito à busca da felicidade é decorrente do princípio da dignidade humana e de outros direitos essenciais. Nesse sentido:
“Esta decisão — que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de apenas alguns”. (Grifos nossos).
Enfatizou que seu voto tem “suporte legitimador em princípios fundamentais, como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade e da busca da felicidade”. E completou que este direito “assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.”
Percebe-se, assim, que o direito à busca da felicidade nada mais é do que o resultado da efetiva garantia aos direitos essenciais do indivíduo, como igualdade, livre desenvolvimento da personalidade, liberdade de expressão. É a consequência de um Estado Democrático de Direito funcionando em seu pleno vigor. Garantir o direito à busca da felicidade é seguir os preceitos constitucionais clássicos, já presentes no nosso texto constitucional e bem guardados pelo Supremo Tribunal Federal ao cumprir sua missão institucional — o que inclui agir em caráter contramajoritário. Não haveria nenhuma novidade nisso.
Ademais, como reforçado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, o princípio da dignidade humana não deve ser invocado de modo inflacionário, a fim de evitar sua desvalorização e sua utilização de forma panfletária[6]. Ou seja, não deve ser constantemente utilizado como base para obtenção de determinado direito. Na mesma linha, também os direitos fundamentais devem ser resguardados para que não caiam na vala comum e se tornem meros argumentos retóricos. Não deveria haver proliferação de direitos fundamentais obviamente decorrentes do princípio da dignidade humana e da concretização de direitos fundamentais já existentes na Constituição.
No Brasil, nosso texto constitucional não prevê apenas um elenco de direitos especiais de liberdade, mas também um direito geral de liberdade, que, em conjunto com o artigo 5º, parágrafo 2º, estabelece um sistema aberto que consagra outros direitos não previstos de forma explícita[7]. É desnecessário, assim, positivar um novo direito para cada possibilidade de desenvolvimento da liberdade e da personalidade individuais não previstos na Constituição.
De acordo com Dworkin, o médico, “a felicidade artificial é aquela que não combina com os fatos da própria vida. A pessoa anda mal das pernas, não está vivendo como gostaria — ou como pensa que deveria estar vivendo — e ainda assim, por meio de remédios, tem a sensação de felicidade.”. Guardadas as devidas proporções, inserir o direito à busca da felicidade na Constituição Federal seria uma espécie de paliativo desnecessário, praticamente um placebo.
Não cabe ao nosso texto constitucional tornar a busca à felicidade obrigação social ou consequência da concretização de direitos sociais. Deve-se garantir, acima de tudo, que a dignidade humana seja preservada em suas diferentes dimensões. A constitucionalização do direito à busca da felicidade, sem a devida garantia efetiva de preceitos essenciais, parece dispensável. É preciso atentar-se para essa questão, caso contrário, teremos uma verdadeira depressão coletiva constitucionalizada.

[1] DWORKIN, Ronald. A infelicidade é necessária. In: Época, n. 467, p. 92-93, 2007.
[2] O direito à busca da felicidade já foi mencionado pelos textos constitucionais da França, do Japão, da Coreia do Sul e do Butão, além de ser objeto de resolução da Organização das Nações Unidas, que, em 2011, sugeriu que os governos elaborem políticas públicas visando à felicidade das pessoas. Conferir artigo de Miguel Reale Jr. Direito à felicidade, publicado no jornal Estado de São Paulo, em 5.2.2011.
[3] RAND, Ayn. Men´s Rights.Ayn Rand Center for Individual Rights.Disponível em: http://www.aynrand.org/site/PageServer?pagename=arc_ayn_rand_man_rights
[4] PEC 513/2010 , proposta pela deputada federal Manuela D´Ávila (PCdoB-RS), e PEC 19/2010, proposta pelo Senador Cristovam Buarque (PDT-DF).
[5] ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, Pleno, julgamento em 26.11.2012.
[6] HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da Dignidade, ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57.
[7]SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.430.
 
by Beatriz Bastide Horbach é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
 
 

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