sexta-feira, 9 de maio de 2014

“O maior problema do STF é a falta de filtros para selecionar o que é importante para a justiça”


Aplicar o direito não é uma atividade mecânica, as soluções não vêm pré-prontas. Assim, diante de casos polêmicos, em que muitas vezes o Legislativo demora a deliberar, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso defende que o Judiciário “empurre a história”, ou seja, que a impulsione e dê respostas à sociedade. A necessidade dessa iniciativa foi citada pelo ministro em seu discurso de abertura do XI Simpósio de Direito Constitucional, realizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) no início deste mês, em Curitiba. Durante sua exposição, o ministro lembrou também que, por outro lado, a história tem seu próprio ritmo e que esse tipo de estímulo tem de ser usado com muita parcimônia para não se correr o risco de cair no autoritarismo. Quando era advogado, a efetivação dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional era uma bandeira que Barroso defendia. Nessa época, ele atuou em prol de questões consideradas polêmicas, como a união homoafetiva, o aborto de fetos anencéfalos e a não-extradição do italiano Cesare Battisti. Agora que se tornou o mais recente ministro da corte, ele pretende atuar para garantir a efetividade da Constituição. Em entrevista exclusiva ao caderno Justiça & Direito, Barroso refletiu sobre sua atuação na corte constitucional e sobre o papel do Judiciário na resolução dos casos difíceis.
Depois de anos advogando perante o Supremo Tribunal Federal, como é a sensação de estar do outro lado do plenário?
A grande diferença é que um advogado, sobretudo um advogado mais sênior como eu era, escolhe a sua agenda. Um ministro do Supremo tem que lidar com todos os processos que acontecem. A segunda diferença é que o juiz tem um pouco mais de poder de interferência sobre a realidade que um advogado. A terceira é que o volume de trabalho e certa disfuncionalidade do Supremo me causam muita angústia. O maior problema do Supremo é uma ausência de filtros adequados para selecionar o que é verdadeiramente importante para a justiça brasileira do que é mais do mesmo e não deveria estar no Supremo. Portanto acho que nós temos de investir a melhor energia em evitar que os ministros tenham de gastar tanto tempo com coisas irrelevantes.
Na ação do mensalão mineiro, o senhor propôs que o Supremo estabelecesse regras quanto ao tema, o que não foi acatado pelo plenário. Como o senhor encara esse comportamento?
Essa questão diz respeito ao papel institucional do Supremo. Eu não tenho simpatia pelo foro por prerrogativa de função porque acho que este não é o papel de uma Suprema Corte. Acho que o Supremo não está aparelhado para conduzir isso da melhor forma e tenho defendido a criação de uma vara especializada em Brasília para desempenhar esse papel. Mas a tese que eu defendi foi que um tribunal de jurisprudência como o Supremo não deve decidir as questões ad hoc, deve ter critérios gerais que valham para todos os casos. Portanto eu propus um critério geral que nesse caso não passou. Mas, no caso do desmembramento, eu propus e passou, e agora a regra geral é: chegou o processo ao Supremo, imediatamente se desmembra para que só tramite pelo Supremo a ação em face de quem tem foro por prerrogativa.
A atividade de um juiz pode ser entendida como discricionária?
Juízes não produzem decisões livres. Toda decisão de um juiz tem de ser reconduzida a uma norma jurídica, esteja ela na Constituição ou esteja na lei. Portanto, nesse sentido, ela é sempre uma decisão jurídica. Porém, sobretudo nos casos difíceis, eu acho que o ponto de observação do juiz e sua concepção de mundo fazem diferença. Por isso mesmo que em tribunais como o Supremo e em todos os tribunais do mundo existem votos vencidos, votos divergentes. O direito não é matemático, e a aplicação do direito não é puramente mecânica, portanto diferentes maneiras de compreender a vida e o mundo influenciam o resultado final de um julgamento.
Como vê as declarações do ex-presidente Lula, que afirmou que o julgamento do mensalão foi 80% político e 20% jurídico?
Não gostaria de comentar.
O senhor foi o primeiro neoconstitucionalista a chegar ao STF. Como isso alterará a maneira como o tribunal julga as causas?
Eu acho que o termo neoconstitucionalista é apenas um rótulo. O neoconstitucionalismo descreve um modo como se pensa e pratica o direito, eu apenas arrumei essas ideias, não as inventei. Elas estão na vida. Mas eu fui talvez um dos primeiros autores que defendeu a efetividade da Constituição ao chegar ao Supremo, fui um dos primeiros autores que defendeu a nova interpretação constitucional. Eu sou um militante antigo do direito constitucional. Portanto eu falo e escrevo sobre as coisas há muito tempo e tenho procurado ser coerente no Supremo com as coisas que eu acho. Agora, eu sempre defendi o papel atuante do Judiciário na proteção dos direitos fundamentais, sobretudo e inclusive das minorias. Eu defendi a união homoafetiva, eu defendi ações afirmativas, eu defendo o direito das mulheres de interromper a gestação. Isso faz parte da minha filosofia de vida.
O senhor citou a necessidade de empurrar a história e que é preciso parcimônia no papel do juiz. Como controlar esses atos para evitar autoritarismo?
Essa é uma questão que atravessou os milênios, que é quem controla os controladores, quem vigia os guardiões. Em uma democracia existem equilíbrios institucionais e, portanto, quando o Executivo tem uma forte carga de legitimidade, as suas decisões tendem a prevalecer. Quando o Legislativo tem uma forte carga de legitimidade, o Judiciário não costuma se comportar de uma maneira ostensiva. Há uma dinâmica na vida das instituições em que alguns momentos prevalece mais o Executivo, em outros momentos prevalece o Legislativo, e, em outros, um pouco mais o Judiciário. Isso não é sinal nem de crise nem de disfunção. É uma dinâmica natural da vida democrática. Agora, eu pessoalmente considero que uma democracia política é gênero de primeira necessidade e considero que o maior compromisso do país consigo mesmo é fazer uma reforma política que recoloque o Poder Legislativo no centro das decisões políticas do país.
O senhor considera que, atualmente, o Judiciário está prevalecendo?
Eu acho que em algumas matérias o Judiciário tem, não propriamente prevalecido, mas tido mais visibilidade, o que é uma distorção completa. Mas, por exemplo, na questão de pesquisa com células-tronco embrionárias, o Congresso aprovou uma boa lei, mas ela foi aprovada e a sociedade brasileira não participou e nem se deu conta desse debate. Quando o procurador-geral da República propõe uma ação direta e questiona a matéria no Supremo, aí há um debate nacional. Ou seja, tem alguma coisa errada num sistema em que o debate parlamentar tem menos visibilidade que o debate judicial.
Como o senhor encara as críticas ao ativismo judicial?
Ativismo é, de novo, um rótulo. Então, era preciso conceituar o que se está colocando dentro desse rótulo. Se ativismo significar criação livre do direito pelo juiz, eu sou contra, é péssimo. Mas, se ativismo significar que, naquelas situações em que o Congresso não tenha atuado e que exista um direito fundamental em jogo, o Judiciário deve atender à demanda social existente, aí eu acho que ele pode ser bom. O ativismo em si, com parcimônia, pode ser bom ou pode ser ruim. Portanto é difícil falar em tese. O que eu posso dizer é que o ativismo, mesmo o bom, deve ser um antibiótico, ou seja, usado esporádica e pontualmente para combater um problema. Ele não pode ser a regra numa sociedade democrática.
by Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/entrevistas/conteudo.phtml?tl=1&id=1467167&tit=O-maior-problema-do-STF-e-a-falta-de-filtros-para-selecionar-o-que-e-importante-para-a-justica. Acesso em: 09 mai. 2014.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Primeiras considerações sobre o Marco Civil da Internet

Hoje foi sancionada a lei que “estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da internet no Brasil”, que já se tornou conhecida como Marco Civil da Internet. Trata-se de uma lei de enorme repercussão social, que se dilata por diferentes áreas do Direito, ao exemplo do Direito Constitucional, do Direito Civil, do Direito da Comunicação e do Direito Penal. Em muitos aspectos, o Marco Civil da Internet tangencia a experiência legislativa estrangeira e comparada, o que torna esse tema muito interessante para esta coluna, que, em outras edições, analisou vários problemas relacionados ao uso da internet, à privacidade de dados e ao controle das publicações na rede.
O Marco Civil da Internet compõe-se de 32 artigos, muitos dos quais de grande complexidade, o que não permitirá seu exame em apenas uma coluna.
Esta semana, far-se-á a análise crítica de seu primeiro capítulo.
No artigo 1o, têm-se dois pontos de relevância: (a) a definição do objeto da lei — regular o uso da internet no Brasil; (b) o reconhecimento de que a lei terá caráter nacional, ao estabelecer as “diretrizes para atuação da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios em relação à matéria” (artigo 1o, parte final). Quanto a esses dois pontos, é importante fazer duas observações:
(1) A lei usou de maneira ambígua as expressões princípiosgarantiasdireitos e deveres, que figuram em sua ementa e no início do artigo 1o, o que se revela de modo mais explícito quando se observa que a lei menciona os fundamentos (artigo 2o), os princípios reitores (artigo 3o) e os objetivos (artigo 4o) da disciplina do uso da internet no Brasil. Não houve uma preocupação maior com as distinções terminológicas entre fundamentos, princípios e objetivos. Os direitos e garantias vêm agrupados no capítulo segundo da lei, ao passo que os deveres não se agruparam em uma seção específica.
(2) Quanto à fixação de “diretrizes para atuação” dos entes federados, tal como se lê do artigo 1o, primeira parte, a lei perdeu a oportunidade de qualificar juridicamente a internet e estabelecer um diálogo com a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472, 16 de julho de 1997), que trata do “serviço de valor adicionado” e define-o “como atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações” (artigo 61, caput), sendo certo que o “serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição” (artigo 61, parágrafo 1°).
Essa preocupação é menos formal do que se imagina, pois envolve uma séria possibilidade de discussões sobre a constitucionalidade, por reserva de competência, de normas baixadas pelos entes federados sobre as chamadas “diretrizes para atuação”. Nem se diga sobre a vacuidade do que seriam essas “diretrizes para atuação”. Observada a titularidade ampla das pessoas jurídicas referidas no artigo 1o da lei do Marco Civil, é de se considerar relevante essa preocupação quando todos eles começarem a legislar sobre a internet. Quais os limites materiais dessa competência normativa?
Os fundamentos para o uso da internet no Brasil estão assinalados no artigo 2o e compreendem: o reconhecimento da escala mundial da rede; os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a diversidade; a abertura e a colaboração; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor e a finalidade social da rede. Alguns desses fundamentos podem ser reconduzidos à Constituição Federal de 1988, como os direitos humanos (artigo 5o e seu parágrafo terceiro, CF/1988), a defesa do consumidor (artigo 5o, inciso XXXII, CF/1988), a livre iniciativa (artigo 1o, inciso IV, CF/1988) e, de modo indireto, a livre concorrência (artigo 173, parágrafo 4°, CF/1988). Outros, no entanto, como a “finalidade social” poderão ser confundidos com a “função social”, também presente na Constituição, em face do direito de propriedade (artigo 5o, inciso XXIII, CF/1988). Se há ou não coincidência entre esses dois conteúdos, a lei não permite que se ofereça uma resposta imediata, embora seja mais adequado supor que esse é um novo conceito, cuja originalidade desafiará a doutrina a revelar seu alcance.
O “desenvolvimento da personalidade”, ao menos sob a óptica legislativa, é também um conceito novo e cuja genealogia pode ser identificada nas teorias psicológicas da personalidade, especialmente no campo da estabilidade da personalidade. Seria também possível identificar esse novo fundamento com o conceito alemão do “livre desenvolvimento da personalidade” (artigo 2o, inciso I, Lei Fundamental de 1949), segundo o qual “todos têm o direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que não violem direitos de outrem e não se choquem contra a ordem constitucional ou a lei moral”. Em princípio, o fundamento contido no Marco Civil conecta-se com a concepção psicológica e não com aquela extraída da experiência constitucional alemã.
Na próxima coluna, dar-se-á sequência ao exame dessa nova e importante legislação, com seu posterior cotejo com os direitos comparado e estrangeiro.
by Otávio Luiz Rodriguez, advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-abr-23/direito-comparado-primeiras-consideracoes-marco-civil-internet. Acesso em: 24 abr. 2014.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Suprema Corte Americana mantém decisão de Michigan contra ação afirmativa

Uma decisão importante foi tomada pela Suprema Corte americana nesta terça: ela sustentou uma lei de Michigan vetando o uso do critério racial para a aprovação em universidades, batalha crucial envolvendo as ações afirmativas no país.
Por 6 votos a 2, foi decidido que a justiça de instância inferior não tinha autoridade para ignorar uma medida aprovada em 2006 por 58% dos eleitores em referendo. Essa medida proíbe que universidades financiadas com recursos públicos garantam tratamento preferencial a qualquer indivíduo ou grupo com base no critério de raça, sexo, etnia ou nacionalidade.
A juíza Sonia Sotomayor, vista como “progressista”, foi um dos votos vencidos e repudiou a decisão majoritária: “Para os membros de grupos historicamente marginalizados, que dependem dos tribunais federais para proteger os seus direitos constitucionais, a decisão dificilmente pode reforçar a esperança em uma visão de democracia que preserve para todos o direito de participar de forma significativa e igualitária no auto-governo”.
Mas, como outros juízes colocaram, o caso sequer era sobre a ação afirmativa em si, e sim sobre quem tem a autoridade de decidir sobre o assunto. Juízes “progressistas”, ligados ao presidente Obama, não costumam ter muito apreço pelo federalismo e a divisão de poderes, tampouco pela preferência da maioria. São “agentes do progresso” imbuídos de uma missão revolucionária que pode passar por cima da Constituição e das escolhas locais.
Nem preciso dizer que concordo tanto com a decisão da Suprema Corte como com a medida de Michigan, aprovada em referendo popular. Permitir que universidades financiadas com os impostos utilizem critérios raciais para discriminar alunos é absurdo, fere a igualdade perante as leis, e acaba fomentando o racismo que se pretende combater.
Não faz o menor sentido segregar a população com base na “raça” e criar privilégios, tudo isso em nome da luta contra o racismo. Que a decisão da Suprema Corte representa um marco na defesa do verdadeiro liberalismo, não aquele colocado na boca de “progressistas” de esquerda como Obama, e sim aquele clássico, que prega a igualdade de todos perante as leis.
Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/racismo/suprema-corte-americana-mantem-decisao-de-michigan/. Acesso em: 22. abr. 2014.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Novo pacto federativo para aprimorar a democracia brasileira

A agenda constitucionalista para a segunda década deste século certamente não pode ignorar a premente necessidade de aprofundar os debates sobre a organização do Estado brasileiro.
Há um clima de insatisfação no ar que atinge as instâncias tradicionais de representação política e demonstra a importância de maior abertura à participação política e à democratização dos mecanismos de planejamento, formulação e execução de políticas públicas, hoje fortemente centralizados.
Nesse contexto, o federalismo e a possibilidade de formação de um novo pacto federativo – de índole realmente cooperativa - adquire grande atualidade, uma vez que a manutenção da unidade estatal combinada com maior possibilidade de ação democrática e preservação das particularidades regionais e locais é o centro da proposta federativa de Estado. 
É certo que na Constituição de 1988 o princípio federativo revela-se como princípio estruturante da ordem jurídico-institucional do Estado Brasileiro (preâmbulo e artigo 1° da CF/88) e também como cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4°, inciso I, CF/88).
Desse modo, a República brasileira se organiza na forma de uma Federação[1], cujos entes (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) formam, no sistema constitucional vigente, uma união indissolúvel (artigo 1° da CF/88).
Contudo, para além de sua enunciação, a força normativa desse princípio depende de uma série de fatores, que vão desde a forma política do Estado e seu papel, passa pelo conjunto de regras constitucionais que o concretizam e também pela construção jurisprudencial de seu conteúdo.
Daí porque é preciso, antes, compreender os fundamentos do federalismo, não apenas enquanto teoria, mas também como um processo dinâmico em que a estrutura estatal vai ganhando novos arranjos na medida em que as condições sociais, políticas e econômicas exijam.
Deve ser considerada, também, a dimensão propriamente sociológica que faz com que a organização política da Nação se desenvolva de modo a diminuir as desigualdades regionais (artigo 3, inciso III, CF/88) e a preservar a diversidade cultural, econômica e social no interior do país, sem admitir a desintegração da estrutura institucional estabelecida.
A partir dessas premissas, o presente artigo tem por objetivo (i) apresentar o federalismo não apenas como teoria reitora de uma determinada estrutura estatal, mas como processo dinâmico, (ii) trazer algumas reflexões sobre a engenharia federativa adotada no Brasil, especialmente a partir da Constituição de 1988 e, ao final, (iii) apontar que o novo pacto federativo – cooperativo - é necessário para o aperfeiçoamento democrático, apesar dos resquícios dos paradigmas estadualistas e centralizadores na cultura política brasileira. 
Leia na íntegra aqui
by Marco Aurélio Marrafon - presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

Fonte: CONJUR

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sustentabilidade e Direito ao Futuro na obra de Juarez Freitas

Sustentabilidade, direito ao futuro, de Juarez Freitas, sai em 2ª edição pela Editora Fórum. Obra contemplada com a medalha Pontes de Miranda, da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Sustentabilidade, direito ao futuro, é livro que inaugura entre nós, em matéria ambiental, o trânsito do conceitual ao pragmático, do metafísico ao empírico, do imaginário ao real.
Como resultado da intervenção de Juarez, o ambientalismo transcende dos limites do discurso meramente apocalíptico e alcança a dignidade de uma fala propositiva. Juarez de Freitas critica — retomando uma tradição que mantém desde seus primeiros trabalhos, associados à renovação crítica do direito brasileiro —, mas também propõe, sugere, argumenta, comprova, orienta. É a obra de um professor, na exata dimensão platônica da expressão. Mais. É um manifesto.
Fracionando cartesianamente o livro em dez núcleos temáticos, Juarez inicia com um conceito razoável de sustentabilidade, dimensionada como substância de um princípio constitucional diretamente aplicável, dotado de eficácia, veiculado por meios idôneos, instrumento para consecução de ambiente saudável, plasmado por juízo de valor ético absoluto, preventivo, elo de solidariedade intergeracional, matiz (matriz?) de responsabilidade estatal, indicativo de alcance de bem-estar[1].
Juarez discorre sobre uma natureza multidimensional da sustentabilidade, captando-a em suas instâncias sociais, éticas, jurídicas, politicas, econômicas e ambientais. Caminhando no sentido inverso do reducionismo ambiental epistemológico, para o qual tudo converge para o ambiental, sem que se considere outras dimensões da experiência humana, Juarez conclui que a “sustentabilidade é princípio-síntese que determina a proteção do direito ao futuro”[2]. Para Juarez, a sustentabilidade não é (...) “mera norma vaga, pois determina, numa perspectiva tópico-sistemática, a universalização concreta e eficaz do respeito às condições multidimensionais da vida de qualidade, com o pronunciado resguardo do direito ao futuro”[3].
Segue uma abordagem original sobre o choque de paradigmas. Juarez retoma o pensamento de Thomas Kuhn, historiador da ciência para quem cada contingência histórica contempla um conjunto compreensível de linguagem, de referências e de pressupostos. Menos do que respostas, a teoria dos paradigmas indica-nos a suspeição que as perguntas nos provocam, aporia também explorada por Karl Popper. Há, assim, um choque entre um paradigma decadente (de insaciabilidade patológica e compulsiva) ao qual se contrapõe um paradigma ascendente (de sustentabilidade)[4], do qual Juarez se revela como arauto, porta-voz e inteligente formulador.
Juarez expõe também temas centrais para uma nova agenda da sustentabilidade multidimensional, que esgota de A a Z, e que tem como um dos pontos uma proposta para que mapeemos “focos de injustiça ambiental, no sentido de [adotarmos] políticas públicas com máximo rendimento, empiricamente planejadas”[5]. Nesse mesmo sentido, vincula o ambientalismo a uma ética geral, ao anunciar a necessidade de que enfrentemos “com vigor, a improbidade (pública e privada), que suga os preciosos recursos que devem ser direcionados para o cumprimento das metas de sustentabilidade, que incluem (...) uma inelimitável dimensão ética”[6].
Na percepção de Juarez, a sustentabilidade é um valor constitucional; em sua linguagem lógica, que evidencia rigor tomista de quem conhece a dicção infalível da escolástica — Juarez tem muita familiaridade com autores da filosofia da Igreja —, a sustentabilidade é valor supremo (...) “que se desdobra no princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar”[7].
Juarez denuncia falácias e armadilhas argumentativas que ameaçam a densidade da percepção que propõe de sustentabilidade; mais uma vez, Juarez revela-se como um lógico, conhecedor de Abelardo e do Círculo de Viena. Demonstra que domina a retórica, clássica (Aristóteles, Cícero) e contemporânea (Perelman). É o ponto mais forte do livro.
No capitulo seguinte Juarez trata da relação entre educação e sustentabilidade. Revela-se como hermeneuta comprometido com o resultado das interpretações que propõe: fixou “premissas essenciais para uma efetiva educação responsável”[8].
Juarez também colocou questão-chave a propósito da relação entre a sustentabilidade e o contexto pragmático contemporâneo com o qual lidamos: quais são os principais vícios políticos que inviabilizam a concretização do princípio constitucional da sustentabilidade (...)? Como resposta, denunciou o patrimonialismo, o tráfico de influências, a omissão recorrente e o mercenarismo[9].
A sustentabilidade que nos propõe Juarez exige um novo direito administrativo, especialmente no que se refere a uma nova concepção de procedimentos licitatórios: é a licitação sustentável. Trata-se do capitulo mais dogmático e prático do livro, no qual Juarez nos indica o que fazer, depois de ter nos ensinado o que não fazer, e por que fazer.
Juarez encerra o livro enfrentando o problema da responsabilidade do Estado em face dos problemas de sustentabilidade. Mais uma vez, concebe um novo direito administrativo. E porque também estudou Kant, Juarez conclui essa obra maravilhosa indicando máximas nas quais se escora a sustentabilidade, como dimensão localizada e pormenorizada de um imperativo categórico que comunga o homem com a natureza.
Juarez é um inovador. Ensinou-nos muitas coisas. Quando jovem, nos ensinou que a lei injusta é superlativamente inconstitucional; naqueles tempos, nenhum de nós entendia a Constituição sob um prisma tão abrangente. Juarez nos ensinou que temos direito a um bom governo, quando ainda não percebíamos que a democracia substantiva era muito mais que o direito ao voto. Juarez nos ensina agora que o amor à natureza é o que nos redime, o que sufraga nossa aliança com a humanidade e o que nos liberta da ansiedade para as consequências de nossas omissões.
Sustentabilidade, direito ao futuro, de Juarez Freitas, é um refinado texto filosófico concebido por um de nossos maiores pensadores. E é também um denso texto compreensivo e explicativo sobre politicas públicas, redigido por um de nossos maiores engenheiros sociais. É um livro prático escrito por um profeta. É um texto profético, redigido por lógico. Juarez é também um esteta da língua que amalgamou teoria e prática, previsão e ação.

[1] Cf. Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 41.
[2] Cf. Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., p. 73.
[3] Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., loc. cit.
[4] Cf. Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., p. 83.
[5] Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., p. 102.
[6] Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., p. 103.
[7] Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., pp. 133-134.
[8] Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., p. 173.
[9] Cf. Freitas, Juarez, Sustentabilidade - Direito ao Futuro, cit., pp. 175 e ss.

by Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.

Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jan-19/embargos-culturais-sustentabilidade-direito-futuro-obra-juarez-freitas. Acesso em: 14 abr. 2014.

Stuart Hall e o Direito: Identidades, Discriminação e Principiologia Jurídica

A morte do sociólogo e teórico cultural Stuart Hall, no recente dia 10 de fevereiro de 2014, apresenta-se como uma oportunidade para rediscutir algumas das ideias centrais do estudioso, cujo trabalho “A Identidade Cultural na Pós-modernidade” (1992) se consagrou nos campos de estudo brasileiro que se comunicam com os estudos culturais, em especial, o direito, que não se perfaz cindido de um tempo e espaço, ou seja, de uma cultura, no bojo da qual se consolidam modos de existir concentrados em identidades mais ou menos móveis.
Stuart Hall nasceu na Jamaica em 1932, em uma família multicultural (integrantes escoceses, portugueses e africanos), tendo se mudado para Inglaterra, em 1951, onde se estabeleceu e se dedicou tanto à atuação política, por exemplo, quando de sua participação nos anos 1950 em movimentos pelo desarmamento nuclear, quanto à academia, desenvolvendo pesquisas sobre estudos da mídia (em especial o discurso televisivo). Ele também estudou questões de identidade, representações sociais, cultura visual e multiculturalismo, objetos e fenômenos estes pensados em suas implicações políticas.
Como dito, o autor é celebrado por seu livro “A Identidade Cultural na Pós-modernidade”, obra em que confronta o homem da sociedade moderna (que possuiria uma identidade bem definida no contexto social e cultural) e o homem pós-moderno, fruto de mudanças sociais intensas e que deslocaram identidades culturais aos limites da estabilidade e da convivência, estabelecendo-se tanto espaços de conflito entre identidades quanto novas possibilidades e experiências de modos de vida e de configuração do ser humano.
Neste contexto, identidades de classe, sexualidade, etnia, nacionalidade e demais expressões da existência do indivíduo em uma coletividade - ao exemplo da vedação constitucional de discriminação do art. 3°, IV -, ou seja, por razões identitárias - em profusão de identidades culturais em crise, estariam abaladas nos trânsitos pós-modernos, com demandas por novos direitos e posições políticas.
O nexo político da identidade, portanto, é o vínculo de interesse dos estudos de Hall ao direito, uma vez que toda a sistemática de objetivos constitucionais, proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos subjetivos (da personalidade, fundamentais e humanos) passa pela questão das representações sociais, da política da diferença e da contemporização de identidades fraturadas e identificações rivais e deslocantes.
Ao mesmo tempo, a emergência de novas identidades produz para o direito o dever de novas interpretações e readequações da compreensão do ordenamento jurídico de sorte a garantir a tutela humana integral, permitindo a convivência pacífica e a realização do critério-fonte ético-jurídico fundamental da vida, superando-se os reducionismos existenciais da zoopolítica e da biopolítica, resgatando-se um periclitado humanismo.
Como destaca o autor, está em jogo na questão das identidades o campo dos efeitos e consequências políticas da fragmentação e pulverização delas, o que repercute diretamente no direito, em todas as suas projeções. Pode-se dizer que a percepção trazida por Hall vale como instrumento hermenêutico para qualificar e integrar a interpretação jurídica, assim como para se construírem novas categorias que tutelem identidades, permitindo adaptações razoáveis e minimizando ataques de intolerância.
Assim, com clareza, manifesta-se que o jogo das identidades influencia interpretações e decisões tanto políticas quanto jurídicas, conforme exemplifica o autor no estudo de caso da readequação ideológica da Suprema Corte norte-americana em 1991, por meio da inserção de um juiz negro de opiniões conservadoras, o que, no desenrolar dos fatos, vinculou debates sobre gênero, etnia e identidades formadas posições políticas.
Juridicamente, portanto, a partir da atenção ao modo como as identidades são conjugadas, pode-se depreender, por exemplo, violação de princípios jurídicos como a isonomia e práticas reprovadas como a discriminação, o que só enfatiza o quão relevante é ao direito o tema das identidades, bem como se fomentar a afirmação de dimensões éticas do respeito, do reconhecimento e da consideração.
Stuart Hall é lembrado como um defensor do poder da educação para promover mudanças positivas na vida das pessoas, assim como um intérprete dos efeitos políticos das identidades e práticas culturais midiáticas. Seus esforços na decodificação de mensagens midiáticas e na demonstração da fragmentação das identidades são exemplares. A lição do pensador sobrevive para se pensar os problemas jurídicos de modo contextualizado com a sociedade e a cultura, expressando-se como instrumento imprescindível para a realização do direito, essencialmente hermenêutico e que demanda a construção de sentidos inter-relacionados para se manifestar em sua plenitude e se realizar em seu potencial.
by Eliseu Raphael Venturi, advogado, é mestrando em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/artigos/conteudo.phtml?tl=1&id=1448648&tit=Stuart-Hall-e-o-Direito-Identidades-Discriminacao-E-Principiologia-Juridica. Acesso em: 14 abr. 2014.

STF deve ser imune às paixões da opinião pública

Após três meses como ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso chegou a uma conclusão: o volume de trabalho é irracional. Ele propõe, em entrevista ao jornal O Globo, publicada neste domingo (3/11), a transferência do foro especial para autoridades para uma vara especializada em Brasília para resolver parte do problema. Barroso defende o direito das mulheres ao aborto, cobra das autoridades uma reforma política e propõe que os candidatos à Presidência registrem oficialmente sua sugestão sobre o tema. Um dos primeiros votos de Barroso no STF foi decisivo para dar aos condenados no mensalão o direito a um novo julgamento. Ele diz que votou certo e que o STF deve ser imune às paixões da opinião pública.
Leia os principais trechos da entrevista:
Agora que o senhor já está há um tempo no tribunal, pode avaliar: o Supremo é como o senhor imaginava, ou é diferente?
Embora eu conhecesse o tribunal como um observador externo, o volume e a diversidade do trabalho ainda assim me surpreenderam, assim como a quantidade de coisas que eu acho que não deveriam estar lá. Há no Supremo um varejo de miudezas maior do que o que eu imaginava e que consome muito o tempo dos ministros. Parte do meu trabalho e da minha equipe é identificar, num oceano de processos, o que justifica uma atuação do Supremo. Em três meses de tribunal, confirmei o meu sentimento de que é preciso fazer uma revolução no modo como o Supremo atua, sobretudo no modo como escolhe sua agenda.
Como fazer isso?
Acho que o sistema da repercussão geral, que é o filtro do que pode chegar ao Supremo, precisa ser aperfeiçoado. Todos os tribunais constitucionais do mundo, pelo menos os mais importantes, de alguma forma selecionam as causas que vão julgar. Uma ideia que eu já tinha desde antes de entrar para o Supremo e confirmei é a de que o tribunal devia escolher as causas que vai julgar combinando um critério quantitativo com um critério qualitativo. O critério quantitativo envolve uma definição realista de quantos casos o Supremo pode julgar em um ano.
E como fica o foro privilegiado? O senhor acha que o supremo é o espaço para julgar autoridades?
Como regra geral, não. Uma das evoluções que precisam ser feitas é esta: uma drástica redução no foro por prerrogativa de função. Há muitas razões para isto. As principais são, em primeiro lugar, ele não é muito republicano, porque trata desigualmente as pessoas. Em segundo lugar, produz uma certa desfuncionalidade, porque o Supremo não é um tribunal preparado para conduzir processos em primeiro grau, ouvindo testemunhas, produzindo perícias, fazendo interrogatório.
Leia na íntegra aqui.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Jurisdição Constitucional, de Gilmar Mendes, ganha 6ª edição

“Foi assim que tomei consciência do Supremo Tribunal Federal e de sua missão de sentinela das liberdades públicas, vinculando-o a imagens imperecíveis na minha memória. E também na minha saudade.”
Com essa frase bonita e intimista, Aliomar de Andrade Baleeiro presta homenagem à instituição a que dedicou seus últimos anos de vida. Com ela, abre um livro tão interessante quanto importante, “O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido”.
Não pretendo, aqui, resgatar quando “tomei consciência do Supremo Tribunal Federal”, mas, sim, reverenciar obra que faz parte do meu processo de aprendizado e de toda uma geração dedicada ao Direito Constitucional.
Refiro-me à tese de doutorado de Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Münster, em 1990, publicada na Alemanha (Duncker & Humblot) e no Brasil (Saraiva), onde, agora, chega à sexta edição.
Ainda na Graduação, li, e anotei no detalhe, a primeira edição brasileira da obra, publicada em 1996. Três anos depois veio a terceira edição. Na “Nota do autor sobre a 3a edição”, Gilmar Ferreira Mendes registrou, com toda razão: “Esta obra atinge a sua terceira edição. Trata-se, sem dúvida, de feito digno de algum registro, especialmente por se tratar de uma tese de doutorado.”
O livro examina, em ágil paralelo, o Supremo Tribunal Federal brasileiro e o Tribunal Constitucional Federal alemão. Sintetiza a evolução histórica de um e de outro, bem como esmiúça a prática jurisprudencial de ambos em sede de controle abstrato de normas.
Dele constam valiosas propostas de engenharia constitucional. Várias delas foram levadas a efeito nos anos 1990 e 2000, com resultados institucionais salutares, bastante evidentes e conhecidos.
A simples referência a um único desses resultados, dentre tantos e tantos outros[1] , já bastaria para demonstrar o impacto da obra. Refiro-me ao efeito vinculante, primeiro na Emenda Constitucional 3, de 17 de março de 1993, depois na Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999, na Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999 e, enfim, na Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004.
O efeito vinculante representa uma verdadeira revolução no Direito brasileiro. Trata-se de sucedâneo, pela via normativa, ao stare decisis americano. Em síntese, implica vincular o Poder Executivo, de todas as esferas federadas, bem como os demais órgãos do Poder Judiciário, a certos precedentes do Supremo Tribunal Federal. Portanto, busca dar coesão e coerência ao sistema de decisões judiciárias. Em outras palavras: firmado um entendimento pelo Supremo em decisão dotada de efeito vinculante, aquele entendimento torna-se obrigatório. A não observância do efeito vinculante enseja uma ação específica, ajuizada diretamente no Supremo, de nome bastante sugestivo e didático: reclamação. A reclamação permite defender a competência da Corte e a autoridade das suas decisões (mormente aquelas com efeito vinculante).
O efeito vinculante não foi proposto sem base histórica ou a partir de mimetismo institucional. Gilmar Ferreira Mendes tem o cuidado de lembrar a “força vinculante” de que o Regimento Interno do próprio Supremo Tribunal Federal dotou a antiga Representação Interpretativa da Emenda Constitucional 7, de 13 de abril de 1977.
Quando das primeiras discussões acerca do instituto, muitas foram as críticas. O debate foi intenso, por vezes duro. Vários princípios constitucionais eram invocados para, em última análise, reclamar liberdade decisória “aos demais órgãos do Poder Judiciário”. O tempo mostrou que as críticas eram equivocadas e exageradas. O mecanismo demonstrou prática saudável. Tanto isso é verdade que, adotado inicialmente apenas à Ação Declaratória de Constitucionalidade, foi ampliado à Ação Direta de Inconstitucionalidade e expressamente aplicado a um novo tipo de súmula do Supremo Tribunal Federal, a súmula com efeito vinculante, ou, simplesmente, “súmula vinculante”.
Para além do efeito vinculante, também devem ser lembradas outras valiosas contribuições da obra aos debates doutrinários e jurisprudenciais, a começar pela tipologia plural e sofisticada de técnicas decisórias em controle abstrato de normas (interpretação conforme a Constituição, apelo ao legislador, declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, etc.). Merece, aqui, destaque especial a modulação no tempo da decisão de inconstitucionalidade (o chamado efeito ex nunc).
Com isso, engendrou-se no Direito brasileiro uma teia protetiva contra inconstitucionalidades bastante racional e de rompimento difícil. Não houve prejuízo ao controle concreto de normas, mas, sim, reforço do papel do Supremo Tribunal Federal como guarda da Constituição e centro decisório final do aparato judicial.
Por tudo isso, “Jurisdição Constitucional”, de Gilmar Ferreira Mendes, é obra de referência obrigatória sobre o tema. Basta conferir o número de citações que o livro merece. Limito-me a uma única, que tive a alegria de presenciar. Em 31 de janeiro de 2000, quando da posse de Gilmar Ferreira Mendes no cargo de Advogado-Geral da União, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso, em certo momento de seu discurso, anotou:
“No caso do advogado-geral, mormente no caso do Doutor Gilmar Mendes, ele tem uma boa formação, excelente formação acadêmica, tem competência no plano do Direito Constitucional. Eu, mesmo leigo, folheei seus livros, sua tese de doutoramento, feita na Alemanha, para saber. Não sei acompanhar o argumento, muitas vezes, mas sei avaliar, como universitário que fui a vida inteira, a qualidade da proposição. O Doutor Gilmar Mendes tem a competência necessária para levar adiante esse mesmo processo de velar sempre pelo interesse público, na luta cotidiana, nos vários Tribunais. Mas, sobretudo, nos Tribunais Superiores. E aí não me refiro apenas ao Supremo Tribunal, mas ao STJ, que tem um papel crescentemente importante no nosso país, visto que uma boa parte das ações nele terminam.”[2]
Há, nisso, uma grande honra: o reconhecimento expresso da qualidade de um trabalho acadêmico como fator de escolha a um cargo público da maior importância. A sequencia é História em curso.
Enfim, Jurisdição Constitucional, de Gilmar Ferreira Mendes, dá contribuição decisiva à compreensão do real papel do Supremo Tribunal Federal, hoje um “outro” poder bastante conhecido. A nova edição da obra, agora também refletindo a profícua vivência do seu autor como membro do Tribunal, segue indispensável.
 by José Levi Mello do Amaral Júnior é professor de Direito Constitucional e doutor em Direito do Estado pela USP, e procurador da Fazenda Nacional.
Disponível em:<http://www.conjur.com.br/2014-jan-26/analise-constitucional-jurisdicao-constitucional-gilmar-mendes-ganha-sexta-edicao>. Acesso em: 26 jan. 2014.