No Brasil não existe nem República, nem democracia, nem Estado de Direito. Essa é a opinião do professor, escritor e jurista Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, que construiu, através de uma iniciativa judicial, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para melhorar o funcionamento do Poder Judiciário. Entre as mudanças propostas estão a criação de uma Corte Constitucional que substituiria o Supremo Tribunal Federal (STF), modificações na composição e forma de nomeação dos ministros deste e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de alterações nas competências dos dois tribunais superiores. “O objetivo final não é apenas diminuir a carga de processos, mas também estabelecer uma especialização na competência da corte constitucional”, aponta Comparato. Nesta entrevista, concedida por e-mail à Gazeta do Povo, o jurista explica detalhes das principais mudanças previstas na PEC, além de apresentar seu ponto de vista sobre aspectos do ordenamento jurídico brasileiro.
Por que o senhor sugere a mudança de nome do Supremo Tribunal Federal (STF) para Corte Constitucional?
Não sugiro apenas a mudança da denominação, mas também a da natureza do tribunal. Sua jurisdição passaria a ser exclusivamente a de julgar ações sobre matéria constitucional ao contrário do que ocorre hoje com o STF, que acumula a competência para o julgamento dessas questões com a de julgar outras questões, até de interesse privado.
Qual a justificativa para o aumento no número de ministros nos dois tribunais superiores – notadamente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que passaria de 33 para 60 [no STF passaria de 11 para 15]?
Tem a finalidade de reduzir a carga de trabalho de cada ministro, contribuindo para acelerar o julgamento dos processos. O maior aumento no número de ministros no STJ é justificado pelo fato de este vir a absorver toda a matéria não diretamente constitucional, atualmente competência do STF. A Suprema Corte dos Estados Unidos tem apenas nove membros e desempenha rapidamente suas funções, mas faz preliminarmente uma triagem dos recursos a ela dirigidos, admitindo uma minoria deles.
Por que aumentar a idade mínima de 35 para 40 anos para ingresso dos ministros?
Porque a relevância das questões a serem decididas pela Corte Constitucional exige o mínimo de experiência profissional por parte dos ministros. Seria uma forma indireta de se aferir a exigência de “notável saber jurídico”.
Delegar a nomeação dos ministros ao presidente do Congresso Nacional não pode fazer com que a autoridade do Poder Legislativo se sobreponha, de alguma maneira, à do Executivo?
O presidente do Congresso apenas nomearia os que forem escolhidos pelo Congresso, em votação por maioria absoluta de cada uma das duas Casas que o compõem. O que existe, na atualidade, é a preponderância absoluta da Presidência. Até hoje, o Senado Federal rejeitou somente uma designação de ministro para aquele tribunal.
As mudanças nas competências do STF que o senhor propõe são suficientes para diminuir a sobrecarga de processos?
Penso que sim. O objetivo final não é apenas diminuir a carga de processos, mas também estabelecer uma especialização na competência da Corte Constitucional.
O senhor propõe que a Corte Constitucional [STF] fique limitada às causas que dizem respeito diretamente à interpretação e à aplicação da Constituição, transferindo as demais competências ao STJ. Há inclusão ou retirada de outras competências nos dois tribunais? Quais? Por que a necessidade dessa mudança?
A redução de competência para o julgamento de questões constitucionais é mínima em relação ao que existe hoje. Por exemplo, a Corte Constitucional passaria a julgar o recurso extraordinário apenas quando interposto de decisões proferidas por tribunais superiores e não mais de decisões de quaisquer instâncias. Além disso, seriam abolidas as súmulas de jurisprudência predominante. Quanto aos processos em si, suprimi a norma do atual art. 103, § 3.º da Constituição, segundo a qual, “quando o STF apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”. Essa norma contém uma dupla aberração: a exigência de que o Advogado-Geral da União intervenha em todos os processos de ações diretas de inconstitucionalidade, como se estas dissessem sempre respeito aos interesses próprios da União Federal; e a obrigação imposta ao Advogado-Geral da União de defender o ato ou texto impugnado, o que suprime toda independência de apreciação por parte do órgão.
Como está o andamento da PEC? Alguém “comprou a sua ideia”?
Sei que as propostas de emenda constitucional não apoiadas pela Presidência têm tido poucas chances de aprovação no Congresso Nacional. Grande parte dos parlamentares prefere negociar seu voto em troca de favores, como se se tratasse de resolver questões de interesse pessoal.
Sobre a PEC 33: como o senhor vê essa proposta?
A PEC 33 é um despautério. O princípio da separação de Poderes foi admitido progressivamente em todos os países como forma de controle recíproco de competências para evitar abuso de poder. Nenhum dos órgãos deve interferir na competência de outro. Atribuir ao Legislativo o poder de decidir sobre a constitucionalidade de leis significa torná-lo todo poderoso e, portanto, abusivo. A função exclusiva do Poder Judiciário consiste no controle jurídico de leis e atos normativos.
Em outra entrevista, o senhor afirmou que, no Brasil, não existe “nem República, nem democracia, nem Estado de Direito”. Essa opinião se mantém? Por quê?
Continuo a sustentar essa tese. Os grupos detentores do poder oligárquico têm duplicidade de comportamento. Para efeitos externos, fazem questão de se declarar fiéis respeitadores da ordem jurídica. Internamente, porém, a aplicação desta é sempre afastada quando produz o efeito de contrariar o conjunto de interesses pessoais, de corporação ou de classe dos grupos dominantes. É essw a a razão pela qual os grandes princípios da República, da democracia e do Estado de Direito só existem como indumentárias de gala para as grandes solenidades.
Completando 25 anos, a Constituição Federal já recebeu inúmeras emendas, além do fato de possuir muitos artigos. Para uma lei maior do país, isso não representa um perigo jurídico?
O desconchavo não está nessa multiplicidade de emendas constitucionais, mas sim no fato de que, desde a Independência, nenhuma Constituição ou emenda foi submetida a referendo popular. Considera-se que a matéria constitucional é por demais importante para ser submetida à aprovação do “povão”, que continua mantido no seu devido lugar, em estado de pobreza e ignorância, para não perturbar as nossas mal chamadas “elites”.
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