Do goleiro ao ponta-esquerda, do camisa 1 ao 11, o Supremo Tribunal Federal finalmente está com o “time” completo para “jogar” as próximas “partidas”, com um reforço de peso. Um tremendo “craque” entrará em campo. Confirmado pelo Senado Federal no último dia 5 de junho, o ministro Luís Roberto Barroso em breve estreará na Suprema Corte e já é grande a expectativa do público, que aguarda ansioso suas “apresentações” e deposita confiança que estas serão à altura do “camisa 10” que está a substituir.
O ministro Carlos Ayres Britto na “equipe” do Supremo foi o típico meia-atacante clássico que “matava” as bolas que chegavam muitas vezes “quadradas”, as “botava” no chão e desfilava toda sua categoria em direção ao gol, assumindo a responsabilidade da condução serena dos julgamentos mais polêmicos dos últimos anos — alguns deles como relator e o mais difícil de todos, o do “mensalão”, como Presidente.
Reencontrei Ayres Britto duas vezes recentemente. A primeira, pessoalmente, em almoço em torno de uma paixão comum: o Clube de Regatas Vasco da Gama. Outra, intelectualmente, quando, desarrumando as estantes do escritório para organizar minha mudança, deparei-me com uma pequena obra-prima: Revisão Constitucional: Norma de Eficácia Esvaída.
Esse é o título de monografia do professor e advogado Ayres Britto que me fora presenteada por um queridíssimo amigo de Aracaju, colega de universidade no Rio de Janeiro, que, após graduar-se em 1993, retornou para sua cidade natal para trabalhar na assessoria do Tribunal de Justiça sergipano. Na dedicatória de meu amigo, um elogio ao autor, “advogado atuante de quem fui aluno faz algum tempo. Grande sujeito”. No cartão em que me encaminhava os presentes (também recebi um livro do futuro Governador Marcelo Déda), meu amigo dizia “ainda não é dessa vez que nos presenteamos com nossas próprias obras, mas o tempo corre a nosso favor”.
Definitivamente o tempo correu a seu favor. Passados 20 anos, tenho orgulho em dizer que o colega de universidade que me presenteou é Procurador-Geral do Estado de Sergipe. Passados 20 anos agora posso compreender como são importantes equilíbrio, serenidade e, fundamentalmente, bom senso para que sejam dadas as soluções jurídicas mais adequadas para a construção de uma nação civilizada e democrática. A defesa intransigente da higidez da lei constitucional contra pretensões despropositadas de revisão, a feliz dicotomia comparativa entre os regimes jurídicos das emendas e da revisão do artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a interpretação do texto constitucional no seu contexto, já revelavam a persona de um jurista do mais alto gabarito que anos depois viria preencher os quadros do Supremo Tribunal Federal e nele escrever alguns capítulos fundamentais de nossa história jurídica recente.
Luís Roberto Barroso tem todos os atributos para também fazer história no Supremo Tribunal Federal. O mais novo ministro é acima de tudo um advogado admirado por seus pares, porque soube defender suas causas com elegância, técnica e profundo saber jurídico. Há muito não havia tamanha unanimidade entre os advogados, que nele se sentem legitimamente representados, um exemplo de luta intransigente pela tolerância das diferenças, pelo respeito à pessoa humana, pela garantia de uma existência digna.
Mas o que esperar de Barroso na área tributária? Esperamos um constitucionalista, e isso Barroso, sem sombra de dúvidas, é um dos melhores do Brasil. Não foi por outra razão a sua escolha ter sido recebida sem qualquer ressalva pela comunidade jurídica.
A solução às inúmeras questões tributárias que chegam ao Supremo deve ter cada vez mais privilegiar os princípios e garantias constitucionais que alicerçam e sedimentam as relações entre os particulares e o Estado. Criadores e criatura não se encontram em pé de igualdade como muitas vezes os fiscos tentam fazer parecer. Não há direitos do Estado contra os contribuintes, há apenas competências conferidas pela Constituição, que podem e devem ser exercidas dentro dos limites fixados pela própria Carta.
Para os entes públicos, todas as causas envolvendo matéria fiscal se traduzem em cifras de magnitude estratosférica. Muitos bilhões de reais serão perdidos se for decretada a inconstitucionalidade de determinado tributo, não sei quantos programas sociais serão paralisados se uma majoração de alíquota for repelida ou uma dedução de bases de cálculo autorizada. Nunca, jamais, se leva em conta o que poderiam fazer de melhor os particulares para suas empresas, suas vidas pessoais, caso deixassem de ser extorquidos por uma tributação iníqua. E assim seguem os Tribunais assombrados por argumentos ad terrorem.
É chegada a hora de dar mais valor às garantias e princípios constitucionais. Onde foi parar o princípio da legalidade? É admissível deixar passar tributos criados sem lei? Onde estão as garantias do direito de propriedade e da livre inciativa? Que exemplo está se dando para as próximas gerações? Como aceitar tantos descalabros com passividade e resignação?[1]
É chegada a hora de voar mais alto, de abandonar o suposto-saber de regras contábeis que vêm inundando os processos judiciais tributários e passar a discutir as questões à luz de princípios e garantias mais caros à Constituição, como a proporcionalidade e a segurança jurídica. É chegada a hora do Direito Constitucional Tributário.
Exemplo recente de desrespeito ao princípio da legalidade, de tributação desproporcional com base em instrução normativa e de recurso pelo Fisco a argumentos (incorretos) contábeis, que não nos cansamos de discutir nessa coluna, é o da legislação que tributa o investimento brasileiro no exterior (artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01 e Instrução Normativa 213/02, da Receita Federal).
Não se pode admitir como compatível com a Constituição uma lei que não diferencia o regime tributário do investimento brasileiro no exterior. Investimentos das empresas brasileiras em diversos países estão sendo taxados automaticamente, antes de sua eventual distribuição. Empresas são obrigadas a se descapitalizarem para pagar a conta de um imposto que jamais irão recuperar. As eventuais renúncias fiscais de nações menos favorecidas, concedidas com o fito de atrair investimentos, são engolidas pela voracidade arrecadatória brasileira. O que o Brasil faz atualmente seria o mesmo que deixar a Itália apropriar-se da renúncia fiscal do investimento no Nordeste feito pela Fiat, que deve beneficiar-se dos incentivos de redução de imposto da Sudene. Não pode estar certo. Em nenhum lugar do mundo é assim!
Escrevo na madrugada de Miami (já passam das três da manhã), onde estou para participar do Congresso anual de Direito Tributário organizado em conjunto pela International Bar Association (IBA), American Bar Association (ABA) e International Fiscal Association (IFA) que começa nesta quarta-feira, dia 12 de junho.
Minha mesa na sexta-feira de manhã debaterá tratados internacionais, mas tenho certeza que a audiência — composta por profissionais do Direito dos EUA, Canadá e países Latino Americanos — estará ávida por saber quais os rumos da tributação dos investimentos brasileiros no exterior, já que são profissionais que poderão vir a atender os investidores brasileiros em suas respectivas jurisdições. O que dizer? Vocês têm alguma sugestão? Eu ainda não sei.
Reestudando o caso há poucos dias, tive acesso aos votos do ministro Dias Toffoli nos recursos extraordinários 611.586-PR (Coamo) e 541.090-SC (Embraco) e assustei-me com a ressalva inicial neles contida segundo a qual “(...) registro minha posição no sentido de não se aplicar à espécie o quanto decidido no RE nº 172.058/SC- Rel. Min. Marco Aurélio. A hipótese de aquisição de disponibilidade criada pela medida provisória, ao que me parece, cuida da relação peculiar que se estabelece entre o patrimônio das controladoras/coligadas no Brasil e o das controladas/coligadas no exterior (pessoas jurídicas), o que distingue este caso do precedente invocado, no qual se discutiu a constitucionalidade do imposto sobre a renda oriunda dos dividendos distribuídos aos acionistas, quotistas ou sócios individuais (pessoas físicas)”.
Ora, é notório que a inconstitucionalidade do imposto sobre o lucro líquido (ILL) decretada no RE 172.058-SC nada tem a ver com a qualidade do sócio — pessoa física ou pessoa jurídica — e, sim, com a questão de se tributar renda indisponível: (i) absolutamente, no caso de sociedades anônimas e (ii) eventualmente, no caso de sociedades por quotas, em que a distribuição, via de regra, seria automática).
A premissa de que partiu o voto do ministro Dias Toffoli é falsa e, por isso, é merecedora de reapreciação. Mas será isso viável? É de se suscitar esse equívoco na palestra?
E o voto do ministro Joaquim Barbosa, como virá? Ansiosos, aguardamos a revelação da solução dada para considerar constitucional o regime apenas para investimentos em “paraísos fiscais”, muito embora considere o regime legal incompatível com o fato gerador do imposto de renda consagrado no artigo 43 do Código Tributário Nacional. Por ora, como explicá-la ao público? Esse é o nosso desafio imediato. É um pequeno desafio.
Luís Roberto Barroso se junta aos demais ministros e ministras do Supremo para um desafio monumental: zelar pela incolumidade dos princípios e garantias que a Constituição assegura.
Ayres Britto, com a verve poética que lhe é peculiar, terminava sua monografia de 1993 dizendo que mesmo o poder constitucional reformador é derivado e, por isso, limitado ao contexto em que se insere. Qualquer interpretação em sentido contrário e “o Código Supremo seria castelo de areia à beira da praia, exposto às estrepolias do vento e à gulodice do mar”.
A Constituição não pode ser castelo de areia exposta ao vento e ao mar, tem que ser fortaleza de pedra inexpugnável. Essa fortaleza se constrói com posições firmes, com a defesa intransigente das garantias da legalidade da tributação, do no taxation without representation, da razoabilidade, da proporcionalidade e da segurança jurídica. O time está completo, que comecem as partidas e que prevaleça um verdadeiro Direito Constitucional Tributário.
[1] Cfr. Hoje em dia tudo se resolve com instrução normativa
Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-12/consultor-tributario-chegou-hora-direito-constitucional-tributario. Acesso em: 27 jun. 2013.
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