"Sempre que um problema social, como a falta de segurança pública, é destaque na mídia, a primeira vilã para boa parte dos críticos é a falta de leis adequadas. Não demora muito para que esse raciocínio ameace alterar até mesmo regras consagradas na Constituição. No entanto, para um dos maiores estudiosos das Constituições no mundo, o professor português José Joaquim Gomes Canotilho, esse é um círculo vicioso que pode causar mais estrago do que resolver. Após conhecer a fundo as “Leis Maiores” de diversos países, o constitucionalista garante que regras não são suficientes para impedir os desequilíbrios da sociedade. “Os problemas estão nas ruas, não nos artigos da Constituição”, diz.
Canotilho esteve no Brasil a convite da Embaixada Portuguesa e do Instituto Camões, para participar de seminário sobre políticas públicas de saúde, promovido nesta sexta-feira (23/10) pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, em viagem anterior feita ao Brasil, o catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Coimbra, em Portugal, elogiou a Constituição brasileira, nascida de transformações radicais desde o regime autoritário da ditadura militar, “da qual o país se libertou”, diz. No entanto, reconhece que a inserção de inúmeras previsões no texto constitucional a tornam difícil de lidar. “É, talvez, a mais complexa Constituição, em face do volume de detalhamento. É um fator gerador de tensões e que desafia a dialética, mas que completa vinte anos consagrando a separação de Poderes”, afirmou.
Isso não significa, porém, que o processo de construção constitucional esteja errado. “É uma opção que deve ser feita. Queremos que a Constituição traduza diretrizes programáticas para orientar o legislador em sua tarefa ou resumi-la a uma lei quadro, numa “Constituição dirigente”, deixando para o legislador a missão de regular?”, explica. Como exemplo, ele cita a Constituição dos Estados Unidos da América, que mesmo sendo uma das mais enxutas e antigas em vigor, também oferece problemas interpretativos que dão trabalho ao Judiciário. “A fiscalização judicial não foi prevista. A ideia de que o texto tenha o controle feito pelos tribunais só viria mais tarde”.
Para o professor e ex-conselheiro de Estado em Portugal, embora o Judiciário venha ocupando espaços decisivos na República, ele não substitui a política, que tem papel insubstituível e não deve perder o crédito. “Não haverá alternativa para as transformações se não forem reabilitados o político e a política na República”, alerta.
Um dos autores da Constituição de Portugal, Canotilho, de 68 anos, é considerado um dos papas do Direito Constitucional da atualidade, citado com frequência por ministros do Supremo Tribunal Federal do Brasil. É doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, e autor de obras clássicas como Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador e Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Leia trechos da entrevista.
ConJur — O que é o Constitucionalismo no mundo globalizado?
José Joaquim Gomes Canotilho — Existe uma Constituição mundial que é a carta dos Direitos do Homem. Ela protege o cidadão contra o poder do Estado, define os direitos fundamentais das pessoas e consagra a democracia como o regime ideal. As civilizações dialogam entre si. Há países que não têm Constituição. Usam em seu lugar livros religiosos. É bom que haja uma Constituição dos homens, mas a Constituição não é uma Bíblia, assim como a Bíblia não pode servir de Constituição para povo algum.
J. J. Gomes Canotilho — A experiência da limitação dos poderes com o Direito nos ensina que as culturas produzem constituições e se amoldam a elas. Na modernidade, há dois exemplos claros de países em que as Constituições ocupam o centro de suas vidas: a África do Sul e o Brasil. São dois casos em que a Constituição foi produzida em meio a radicais transformações: o Brasil saindo da ditadura e a África do Sul rompendo a segregação, numa transferência de eixo do poder. Na África do Sul, venceu-se o drama secular da segregação. Migrou-se da hegemonia branca para a hegemonia negra pela fórmula pacífica da conciliação ditada por Mandela. Uma experiência traumática que gerou um texto democrático, aberto, plural.
ConJur — O excesso de detalhamento é bom ou ruim?
ConJur — O excesso de temas enxertados na Carta não engessa o legislador?
J. J. Gomes Canotilho — O desencanto que pode haver, embora se debite à Constituição é, na verdade, com os agentes concretos da vida do país. Os problemas estão nas ruas do país, não nos artigos da Constituição. A Constituição pretende legitimar pela bondade. Muitas vezes isso não é compreendido. Quer-se solucionar os problemas da economia, sociais ou culturais com normas jurídicas.
ConJur — As falhas do país estão mais nas leis ou nas pessoas?
J. J. Gomes Canotilho — Você cria elementos de contestação quando tenta regular o sistema tributário, a divisão territorial ou regras de trânsito. A Constituição consagrou o federalismo assimétrico, ainda pouco recortado no país. Organizou os Poderes, criou muitos tribunais. Tratar de reservas indígenas ou direitos adquiridos, por exemplo, exige uma capacidade analítica imensa. Mas é uma tentativa de resposta a esses anseios.
ConJur — Nesse caso, o papel interpretativo da Justiça ajudou?
J. J. Gomes Canotilho — Fica difícil dizer o que é o ideal em termos de Constituição. Constituições tentam dar respostas para a vida em sociedade, tentam resolver problemas. Há artigos discutíveis, como o direito de pistola, uma norma anacrônica, mas que fazia sentido à época de sua criação. No Século XX, a Suíça revisou sua Carta produzida no século XIX. É um bom regrário, mas não está imune a problemas. O país se viu às voltas com um grande escândalo com drogas e com o sistema bancário. O país não integra a ONU nem a União Europeia. É possível prever que, para o futuro, a Suíça não terá as facilidades que vem tendo até aqui.
ConJur — A ansiedade para que seja feita justiça em casos de repercussão não coloca em risco valores mais duradouros, como a presunção de inocência e a liberdade?
ConJur — Crimes financeiros costumam ficar sob os holofotes por envolver pessoas ricas, a quem se atribui a culpa pelas diferenças sociais. Não é um veredito sumário prévio?
J. J. Gomes Canotilho — Não há tipos normatizadores, como define o Direto Penal do Inimigo. O nexo causal é o crime, não a culpa. O acusado não será tratado como inimigo por ser de outra tribo ou por ser suspeito. Não se pode rasgar os princípios fundamentais do Direito Penal, que não se orienta por suposições, nem deve ser administrado em estado de vigilância ou de justiceiros.
J. J. Gomes Canotilho — Claro, não podemos ser angelicais e ingênuos. Essas pessoas respondem por acusações graves, não são diletantes. O terrorismo existe, os valores que eles defendem não são claros. O Estado de Direito deve ser forte. É preciso aplicar sanções e não se pode enfraquecer diante desse tipo de ameaça. Mas também não se pode excluir que essas essas pessoas possam ser reabilitadas no contexto das nações.
ConJur — Diante da marginalidade, a sociedade, assustada, muitas vezes só sente alívio na força repressiva da polícia. Isso vem sendo retratado com frequência pelo cinema brasileiro. Isso é um efeito irreversível?
J. J. Gomes Canotilho — Os filmes de Fernando Meirelles Tropa de Elite e Cidade de Deus trazem um cenário terrível. Mas a resposta a ser dada é que aquilo não é uma fatalidade, não precisa ser daquele jeito. Há um esforço a fazer no campo da cidadania, com distribuição das riquezas e da justiça para evitar aquele destino."
by Alessandro Cristo e Márcio Chaer.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-out-25/fimde-entrevista-jose-joaquim-gomes-canotilho-constitucionalista-portugues. Acesso em: 26 nov. 2009.
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