Resumo: A democracia está em crise, não mais nos sentimos representados, não mais o povo é invocado de maneira autêntica, ora é mero ícone, ora é apenas faceta do que deveria ser um todo. Necessário um novo pressuposto, calcado em possibilitar o máximo desenvolvimento das garantias individuais e de assegurar que o Estado cumpra suas funções constitucionalmente estabelecidas. É a participação irrestrita que caracterizará a democracia participativa, mesclando-se com o amplo acesso ao Poder Judiciário – que surge no cenário democrático como autêntico protagonista. Nessa senda, como meio de inclusão de qualquer cidadão, o processo adquire relevo em seu aspecto político (para além do jurídico), como instrumento que possibilita ao juiz avaliar os múltiplos interesses hierarquizados pela sociedade e, por fim, dar vida ao direito, concretizando, assim, o pressuposto democrático.
Palavras-Chave: Cidadania – Democracia – Judicialização – Participação – Processo
Sumário: 1. Introdução; 2. Pressuposto democrático: o povo; 3. Participação e democracia; 3.1. Democracia vigente; 3.2. Democracia participativa e processo como instrumentos de concretização da democracia; 4 Referências Bibliográficas.
“O povo inglês pensa ser livre e engana-se. Não o é senão durante a eleição dos membros do Parlamento. Uma vez estes eleitos, torna-se escravo e nada mais é”.
Rousseau, O Contrato Social. Trad. por Antônio de P. Machado. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1978, L . III, XV, p. 132.
1 Introdução
As linhas que seguem têm por escopo uma análise jurídico-política[1] da democracia vigente[2] com vistas a proporcionar, ainda que de maneira singela, uma nova alternativa para o florescimento de um espírito participativo do indivíduo na concretização da democracia contemporânea. Iniludível que o ente estatal se tipifica, hodiernamente, não só pelo adjetivo (Estado) de direito[3], como também, pelo seu viés democrático. Dessa maneira, deve o Estado propiciar que a cidadania, elemento essencial da democracia, seja exercida em sua mais ampla plenitude. Contudo, cabe ao próprio cidadão ativo[4] pressionar as instituições para concretizar seus interesses.
Nessa perspectiva, surge o juiz como ator determinante na efetiva criação do direito e na solução das legítimas pretensões sociais, de sorte que a própria democracia se realiza quando resolvido o caso apresentado ao Poder Judiciário.
Para melhor esclarecer os meios através dos quais tal premissa se torna factível, necessário uma releitura da definição do adjetivo democrático, trazendo a tônica para o cidadão - e não apenas para o povo – e, com isso, penetrar nos meandros processuais, onde as garantias constitucionalmente previstas dão ao individuo meios de assegurar que ele se confronte com o posto e busque um aprimoramento do debate democrático. Mais que isso, necessário fazer a distinção entre democracia participativa e democracia representativa para enfim podermos evidenciar que a representatividade já não é mais capaz de sozinha realizar o autêntico ideário democrático, tão aspirado para a realização de uma sociedade justa e solidária.
Estabelecidos estes parâmetros mínimos acerca da forma do Estado, nos debruçaremos sobre a concretização desta através do processo judicial, entendido este como o meio pelo qual os direitos e as garantias constitucionais concretizados no ato criativo do juiz são determinantes para a persecução de uma identidade democrática do Estado.
2 Pressuposto democrático: o povo
Quando entramos no discurso democrático, o primeiro termo aberto é o povo. Não há dúvida que tal elemento deve integrar o conceito de democracia, na medida em que a própria palavra nasce para referi-lo[5]. Contudo qual o papel do povo no discurso democrático?. Seria o pressuposto para atuação do Estado? Seria ele mero símbolo para validar o discurso da democracia? Com singela originalidade, mas com extrema profundidade, indaga Friedrich Müller[6], afinal, quem é o povo?
Segundo o filósofo alemão, muitas são as definições possíveis de povo [7], razão pela qual faz uma proveitosa cisão conceitual acerca do termo: povo como meio de legitimar o Estado, povo-ativo (participante das decisões políticas); povo como instância global de atribuição de legitimidade, povo-ícone; e o povo como destinatário das decisões e atuações públicas. Para os fins do presente trabalho interessa-nos aqui apenas o último termo, contudo, nos é impossível adentrarmos nele sem antes permear, mesmo que perfunctoriamente, os demais significados.
Convém destacar, inicialmente, que a maioria das constituições modernas menciona a palavra povo como pilar de sustentação do Estado Democrático. Isto é, o Estado Democrático de Direito busca sua justificação – pretende sua legitimação – a partir do povo [8]. Nessa perspectiva, tal definição de povo o enquadra na célebre frase de Lincoln - the government of the people – na medida em que o governo está instituído por ele o povo-legitimador. Tal povo não é palpável, mas verificável apenas como fonte de validade do poder estatal.
Por outro lado, aquele que irá ditar os caminhos do Estado, no que tange às suas estruturas políticas vigentes, é o denominado povo-ativo. Aquele que se constitui no legítimo destinatário dos direitos políticos e tem soberanamente a prerrogativa de, tempo a tempo, alterar os que representam seus desidérios através do processo eleitoral.[9] Enfim, povo ativo é o titular dos direitos políticos e aquele que possibilita o governo do povo, the government of the people, le gouvernement du peuple.
Porém, o mais presente povo é o mais sorrelfo deles. É aquele que é invocado, mas que nunca se vê. É aquele cuja legitimidade não se faz presente no sistema. É o denominado povo-ícone. E se traduz naquela imagem de povo que é verbalizada pelos seus representantes e cujas decisões não são atribuíveis ao próprio povo em termos de direito vigente, mas, tão somente como palavra vã de falsa legitimidade. Em outros termos, se é o povo quem dita os critérios de escolha e decisão do Estado – que deverá sempre agir em consonância com o ordenamento jurídico – então toda a resolução estatal deve subsumir-se aos textos democracticamente postos e, em não o fazendo, teríamos o uso da palavra povo como meio para tornar válido algo que na origem não o é [10].
Ora, se há um povo legitimador (ativo), se há um povo deslegitimado (ícone) e se há aquele povo pelo qual se funda o próprio Estado, deve se fazer presente, também, o povo para o qual se erige o Estado. Eis aí o povo-destinatário, que diversamente dos outros, deve ser entendido sem restrições. O povo destinatário é compreendido em todo cidadão pelo qual o corpo social passa a ser responsável, é o rule for the people. Enquanto o povo-ativo é restrito, o povo-destinatário não o é, pois sobre ele recai todos os deveres positivos (prestação) e negativos (não interferência) do Estado, na medida em que atribuíveis a todo e qualquer indivíduo ou que nele se encontre inserido.
A análise feita por Friedrich Müller dos diferentes modos de se conceituar a palavra povo revela-nos que quando da aplicação do direito e da tentativa de efetivação do Estado Democrático, há uma plena confusão entre os muitos destinatários da democracia. Ocorre que as estruturas do sistema acabam por assegurar direitos apenas a determinados tipos de povo, ora povo-ativo ora povo-ícone, contudo esquece-se que a democracia é, acima de tudo, feita para todos e que mesmo que não seja construída por todos (e.g., inc. I e II, do art. 14 da CF) deve, obrigatoriamente, ser exercitável por todos[11]. Não é sem rumo que temos presente em nosso ordenamento o acesso irrestrito ao Poder Judiciário, segundo se depreende do inc. XXXV, do art. 5º da CF. Através deste direito fundamental, as incompatibilidades existentes no meio social se tornam resolúveis e todo indivíduo tem a potencialidade de ser ouvido e ter sua causa satisfatoriamente atendida.
Não basta pensarmos no aprimoramento da democracia apenas na perspectiva da exclusão social que busca inclusão, muito menos nos movimentos sociais da minoria. Estes representam, em última análise, apenas uma faceta do povo-destinatário, e este último deve compreender tanto os excluídos, como também os ativos, aqueles que votam e aqueles que se engajam nas decisões do Estado, compreendendo, enfim, todo cidadão-indivíduo que se encontra no território do Estado, ou como quer o professor de Heidelberg, “o povo enquanto destinatário das prestações estatais negativas e positivas, que a cultura jurídica respectiva já atingiu”[12].
De todo o exposto anterior, podemos concluir que enquanto o povo servir de baluarte para arbitrariedades estatais ou apenas para tentar legitimar atitudes manifestamente contrárias aos interesses constitucionalmente resguardados e que se manifestam em concreto diante do ato jurisdicional instrumentalizado pelo processo, não teremos uma democracia condizente com o enunciado no texto constitucional. Portanto, na mesma medida em que o acesso à justiça é amplo, ampla também deve ser a definição de povo em um verdadeiro Estado de Direito que pretende ser legitimamente Democrático.
3 Participação e Democracia
O vértice da democracia ainda é o povo, contudo dilatado em sua acepção originária. Este ideário de povo deve, necessariamente, ser compreendido em qualquer indivíduo que seja sujeito de interesses juridicamente tutelados[13], protegido pela possibilidade de apreciação de seus conflitos e, preponderantemente, como novo partícipe na realização concreta da seara política. A partir daí, observaremos que não se pode mais mirar a democracia unicamente sob a perspectiva procedimental, como pretendia Bobbio[14], posto que ela vai muito além do mero voto nas urnas a cada período eleitoral determinado e tampouco importa na simples manutenção das regras do jogo[15], já que é dinâmica e se recria diariamente pela práxis.
Leia na íntegra aqui.
Darci Guimarães Ribeiro
Felipe Scalabrin
Mestrando em Direito na UNISINOS
Mestrando em Direito na UNISINOS
Revista Temas Atuais de Processo Civil V.1 - N. 1 - Julho de 2011
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