O Poder Judiciário não se cansa de mandar recados ao Poder Legislativo recitando a máxima latina si vis pacem para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra). O alerta quer significar que os legisladores, para preservarem os princípios da harmonia e da independência entre os Poderes, estatuídos na Carta Magna, precisam fazer a lição de casa e enfrentar a batalha de elaborar as leis necessárias para garantir a normalidade das relações sociais, econômicas e políticas no País. O mais recente recado foi a decisão do STF de que fixará as regras sobre o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço prestado pelo trabalhador. O inciso XXI do artigo 7.º da Constituição, que trata desse tema, aguarda regulamentação há 23 anos. Como o poder não admite vácuo, a Corte o tem preenchido com farta legislação judicial. Chegou até a abrir espaço em seu site para as omissões inconstitucionais, o que pode ser interpretado como puxão de orelha nos parlamentares.
Essa questão do aviso prévio, que começa a ser analisada pelo Supremo por demanda de quatro funcionários do Grupo Vale, abre expectativas pelas consequências que deve gerar para o setor produtivo. O receio é que o Judiciário, ao interpretar a Constituição, acabe alargando os prazos para trabalhadores com muitos anos de casa (hoje o aviso prévio é de 30 dias), o que causaria impacto econômico de vulto e tornaria inviáveis pequenos e médios empreendimentos. Seja qual for a decisão a ser tomada, o que chama a atenção é a incapacidade do Legislativo de preencher as lacunas abertas pela Carta de 1988. De lá para cá, publicaram-se 4.813 leis ordinárias e 80 leis complementares, mas há ainda 126 dispositivos constitucionais que esperam por regulamentação, alguns vitais para a clarificação de direitos e deveres de cidadãos e empresas.
A questão central é: deve o STF entrar no terreno legislativo ou só informar às Casas congressuais sobre suas omissões? É oportuno lembrar que o Supremo só age quando acionado. Sua missão precípua é interpretar a Constituição ante a falta de clareza ou inexistência de leis que detalhem normas sobre os mais diversos assuntos de interesse social. Observa-se que os magistrados, de um comportamento mais cauteloso nos idos de 90, quando apenas comunicavam ao Parlamento a falta de leis, passaram a produzir regras, deixando o desconforto de lado. Nos últimos tempos, sob o empuxo de demandas da sociedade civil, capitaneadas por organizações de intermediação, o STF reposicionou-se no cenário institucional, tomando decisões de impacto, e sem se incomodar com críticas sobre invasão do território legislativo. Nessa direção se incluem decisões por omissão inconstitucional em áreas como aposentadoria especial (decorrente de trabalho insalubre), direito de greve no serviço público, criação de municípios e criação de cargos no modelo federal. No caso do direito de greve, a decisão foi a de se aplicarem ao funcionalismo as mesmas regras para o setor privado, mas em certas áreas do serviço público a manutenção de um mínimo de 30% das atividades (previstas para as empresas) é inadequada, como é o caso de hospitais públicos.
A perplexidade expande-se. Por que os parlamentares, tão afeitos à produção legislativa, deixam de fora de sua agenda a regulamentação de dispositivos importantes da Constituição? A resposta aponta para a falta de consenso. Veja-se a bomba que está prestes a explodir no Congresso: a Emenda 29, de 2000, fixando porcentuais mínimos para gastos na área de saúde. Estados devem destinar 12% e municípios, 15%. Aguarda-se há dez anos! Ora, o Executivo teme que o saldo da conta negativa acabe batendo em seus cofres. Além de emendas já aprovadas carecendo de regulamentação, há projetos de efeitos devastadores, como a PEC 300, que cria o piso salarial para as Polícias Civil, Militar e os bombeiros. As duas matérias representam impacto de R$ 58 bilhões, montante que rasparia os cofres públicos. Portanto, os parlamentares sentem-se entre a cruz e a caldeirinha: de um lado, comprimidos por demandas da sociedade e, de outro, confinados aos parâmetros das políticas econômica e fiscal do governo. No meio do cabo de guerra emerge a miragem de um pacto federativo, que não passa de promessa retórica. Compromissos, acordos e obrigações entre União, Estados e municípios são precários e desmontam o escopo da unidade. Não por acaso, a propalada reforma tributária é um marco divisor de interesses.
Chega-se, assim, ao centro do argumento aqui suscitado: a legislação judicial aparece no vácuo da legislação parlamentar. Não há, nesse caso, transgressão ao princípio democrático de que o representante eleito pelo povo é quem detém o poder de legislar? Em termos, sim. Mas a questão pode ter outra leitura. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua a Constituição, se assenta na preservação dos direitos individuais e coletivos. E os princípios da autonomia, harmonia e independência dos Poderes, sob sistemas políticos em processo de institucionalização, ganham certa frouxidão. Compreende-se, assim, a interpenetração de funções dos Poderes do Estado. Importa, sobretudo, que eles estejam conscientes de seus deveres e omissões. E tocados pela chama cívica que Thomas Paine acendeu no clássico Os Direitos do Homem. "Quando alguém puder dizer em qualquer país do mundo: meus pobres são felizes, nem ignorância nem miséria se encontram entre eles; minhas cadeias estão vazias de prisioneiros, minhas ruas de mendigos; os idosos não passam necessidades, os impostos não são opressivos... quando estas coisas puderem ser ditas, então o país deve se orgulhar de sua Constituição e de seu governo."
by Gaudêncio Torquato, JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO.
Fonte: O Estado de S. Paulo
Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110703/not_imp740037,0.php. Acesso em: 5 jul. 2011.
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