domingo, 27 de fevereiro de 2011

Caso Battisti: a política internacional e o STF

''Quem conduz a política internacional não é o STF''


Mariângela Gallucci - O Estadao de S.Paulo

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não é obrigado a entregar para a Itália o ex-ativista Cesare Battisti, mesmo que a corte autorize sua extradição. "Nossa decisão na extradição, se positiva quanto ao pedido do governo requerente, é simplesmente declaratória. Nós declaramos a legitimidade do pedido para o presidente da República aí decidir se entrega ou não", disse o ministro. Na sessão de julgamentos de quinta-feira, Marco Aurélio votou contra a extradição de Battisti.
Para ele, está havendo uma precipitação no julgamento. "Para mim, está havendo um atropelo quanto ao exame em profundidade do ato de refúgio - isso nunca ocorreu no Supremo, é a primeira vez - e quanto ao voto do relator, que assenta que o presidente da República estará obrigado a entregar o extraditando", afirmou, em entrevista concedida ontem por telefone. "Quem conduz a política internacional não é o Supremo, não é o Judiciário, é o Executivo."
No seu voto, o senhor chegou a mencionar a ditadura no Judiciário.
É. E citei o Canotilho (professor português de direito constitucional José Joaquim Gomes Canotilho), que se mostrou perplexo com os avanços do Supremo. Pelo fato de nós não termos acima um órgão que possa corrigir as nossas decisões, nós precisamos ter uma responsabilidade maior. Não podemos avançar, não podemos atropelar.
Qual é a opinião do senhor sobre o fato de o STF ter analisado o ato do ministro da Justiça, Tarso Genro, de ter concedido refúgio a Cesare Battisti?
Para mim, está havendo atropelo quanto ao exame em profundidade do ato de refúgio - isso nunca ocorreu no Supremo, é a primeira vez - e quanto ao voto do relator, que assenta que o presidente da República estará obrigado a entregar o extraditando. Agora mesmo o presidente Sarkozy, da França, em relação a uma italiana que a corte declarou a legitimidade do pedido de extradição, ele concedeu o asilo. Por quê? Porque o asilo e o refúgio estão no grande todo que é a política internacional. Quem conduz a política internacional não é o Supremo, não é o Judiciário, é o Executivo. E a nossa Constituição, nossa República, está assentada na separação dos Poderes. Os Poderes são independentes e harmônicos. Reconheço que meu voto ontem foi um pouco duro. Mas precisamos perceber que não somos infalíveis, não somos os censores da República de uma forma geral. A nossa atuação é vinculada ao direito posto, à Constituição Federal.
O senhor tem notado um movimento do tribunal, de avanço nas atribuições dos outros Poderes?
Tenho notado que prevalece um pragmatismo muito grande. Ontem (quinta-feira) mesmo eu comecei levantando uma questão de ordem. Pelo regimento, está em bom vernáculo que para julgar matéria constitucional temos de ter 8 (ministros no plenário). Iniciamos a sessão com 7. E depois do lanche, tínhamos 6. E aí, como eu sou um homem que quando assume compromisso eu honro, eu tinha um compromisso em São Paulo na FMU, eu tive de sair. Chego lá (no plenário do STF) no horário certo, às 14 horas. Mas estamos começando as sessões com 30, 40 minutos de atraso sempre. E os intervalos se projetando por 1 hora e 15 minutos, 1 hora e 20, enquanto o regimento prevê 30 minutos. Aí não conseguimos julgar realmente o que desejaríamos julgar.
Na opinião do senhor, o STF está se transformando num superórgão, acima dos outros Poderes?
Eu penso, como sinalizado pelo professor Canotilho, que talvez diante de uma certa inércia, principalmente do Legislativo, o tribunal tende a avançar. Agora, é o que eu digo: um suspiro dentro do tribunal é observado por todos. E o exemplo vem de cima. Se nós queremos a observância das regras jurídicas, nós temos de dar o exemplo.
No fim da sessão de ontem, o ministro Gilmar Mendes deu um recado, dizendo que o presidente tem de cumprir as decisões judiciais.
Não é bem assim. A nossa decisão na extradição, se positiva quanto ao pedido do governo requerente, é simplesmente declaratória. Nós declaramos a legitimidade do pedido para o presidente da República aí decidir se entrega ou não. Agora, se a nossa decisão é negativa, dizendo que o pedido é ilegítimo, essa decisão negativa obriga o presidente da República. Ele não pode entregar o extraditando.
O que ele pode fazer, que é um outro ato, é expulsar o estrangeiro. Mas não entregar ao governo requerente. Pela primeira vez, no voto do relator, ele está consignando que o presidente da República é obrigado a cumprir e entregar. Não é bem assim.
Os três ministros que por enquanto acompanharam o relator já concordaram com essa parte do voto, que o presidente da República é obrigado a entregar Battisti no caso de a extradição ser autorizada, ou ainda não se pronunciaram sobre esse ponto?
Eles não se pronunciaram ainda explicitamente sobre essa questão importantíssima. Não diz respeito a Battisti. É uma questão institucional, de funcionamento dos Poderes. Precisam se pronunciar.

Qual Democracia é melhor? A minha ou a alheia?

A pedido do próprio autor e como contraponto ao artigo “A escolha do Supremo: porque a minha democracia é melhor do que a dos outros“, escrito por Rodrigo Hadar, e já postado aqui.
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As presentes observações constantes nas linhas que seguem, buscam, antes de tudo, contribuir para o debate sobre o atual formato de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal, especialmente a partir das considerações do correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília, Rodrigo Haidar, conforme postas no artigo intitulado “Porque a minha democracia é melhor do que a dos outros”.
Referido correspondente, a partir das circunstâncias da escolha do ministro Luiz Fux para o STF, argumenta, em resumo, que surgiram corporações e movimentos contrários à forma “pouco democrática” da escolha dos ministros para a Suprema Corte. Ressalta que estes movimentos utilizaram argumentos mentirosos. O primeiro deles seria a exigência de uma participação mais ativa por parte do Congresso nas indicações, sustentando a pré-existência do comando constitucional constante no artigo 101.
Sugere uma simples correção de rumos no processo de sabatina do Senado, sendo desnecessária, segundo assevera, a aprovação de mudanças na atual forma de indicação. A segunda mentira – observa com rigor catedrático, o correspondente –, consistiria no argumento da crítica na demora da escolha presidencial da vaga aberta no Supremo, assim como no comprometimento do possível indicado, restando minada a independência dos ministros do STF, que passariam a representar o Executivo junto ao Poder Judiciário.
Finaliza afirmando que soa um tanto quanto autoritário entender que só porque o nome sugerido por estes movimentos não tenha sido indicado, a escolha não teria sido democrática. Apresentadas estas considerações preliminares para melhor situação do leitor, torna-se imprescindível o contra-ponto a diversos argumentos apresentados pelo correspondente, especialmente pela forma limitada, superficial e desvirtuada que algumas considerações foram postas, atribuindo mentiras e equívocos onde não existem. Vejamos com vagar:
Inicialmente cumpre esclarecer a verdade dos acontecimentos pretéritos, recordando que vários movimentos sociais importantes, muitos dos quais componentes do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), defenderam, a partir de uma articulação espontânea, uma importante e estratégica causa. A ideia buscou, por princípio, uma mudança de paradigma no processo de indicação de juristas para o Supremo.
Sem generalizar, independentemente de partidos políticos e presidentes da República, as indicações muitas vezes seguem um ritual de forças e de indicações políticas de bastidores, tendo como principal e decisivo critério a fidelidade partidária ou pessoal do suposto candidato em relação ao Executivo ou a determinado grupo de poder. Nesse particular, cumpre esclarecer aos críticos mais atentos que o problema não se restringe à formalidade da indicação em si, mas à prática cultural de bastidores, fermentada e negociada muitas vezes sem transparência e diálogo efetivo com a sociedade civil organizada. E isso, parece fato!
A sugestão de indicação do juiz Márlon Reis a uma vaga no Supremo se deu não apenas por sua competência técnica e por seu comportamento ético, mas, primordialmente, por bem representar o denominador comum de todos estes movimentos e pessoas. Aliás, certo parece o equívoco e o julgamento apressado apresentado pelo afoito correspondente, que não observou o objetivo real da causa defendida por estes movimentos, já reconhecidos nacionalmente pela contribuição democrática, com destaque para a mobilização popular em torno do chamado “Ficha Limpa”. De toda sorte, cumpre reafirmar que o desiderato primordial era, e continua sendo, a possibilidade de debates públicos sobre a indicação de cargos desta espécie, seja para o Supremo, Tribunais de Justiça (nos quintos constitucionais), Tribunais de Contas, etc.
A presidente Dilma Rousseff, ao indicar o ministro Luiz Fux para ocupar a vaga no STF, agiu de forma legal e constitucional, não havendo reparo algum à indicação. Aliás, a indicação do ministro Luiz Fux foi muita bem recebida nos meios jurídicos, especialmente por se tratar de magistrado de carreira, experimentado e reconhecidamente dedicado aos estudos aprofundados das questões jurídicas, com visível destaque às questões do processo civil.
Certamente não lhe faltará sabedoria, serenidade e competência para a análise de questões cruciais para a democracia brasileira, como a imediata aplicação da Lei da Ficha Limpa; a aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos corruptos; a investigação criminal por parte do Ministério Público; a judicialização da política, dentre outros temas relevantes que demandam uma imediata resolução por parte do Supremo Tribunal Federal.
O que se lamentou, ao contrário do sugerido no artigo ora contraposto, foi a perda da oportuna possibilidade de ampliação do debate público e popular sobre indicações desta espécie. O movimento buscou unicamente – e continuará firme neste propósito – implementar inédita estratégia de debate democrático a partir da indicação para o STF. Enfim, para que não reste mais qualquer dúvida a respeito, pretendemos – e vamos – ampliar e fomentar o debate sobre a politização do judiciário no atual sistema constitucional brasileiro, junto à opinião pública brasileira.
A bandeira da candidatura de Márlon Reis ao cargo de ministro do Supremo não se apresentou como uma imposição arbitrária ou a única escolha democrática possível. Ao contrário, justamente o oposto disto. Apresentou-se como uma sugestão – uma possibilidade – materializada por meio de um nome (e podem ser tantos outros juristas qualificados, especialmente aqueles de carreira, a exemplo do ministro Luiz Fux). Pretendeu-se apenas inaugurar um diálogo aberto, transparente e franco com os poderes constituídos. Sem um nome a ser sugerido, ou seja, sem a materialização de um possível “indicável”, o debate se tornaria vazio, especialmente pela circunstância temporal que se apresentava, haja vista que a nomeação estava pendente há mais de seis meses. Ademais, pelo que recordo, a Constituição Federal não proíbe a apresentação de ideias e de sugestões, ainda que impertinentes e incômodas para alguns.
Portanto, a ideia de lançar um nome – ou nomes – com o apoio de movimentos sociais e de articulações populares, não se esgotou no objetivo imediato. Ela representa a semente de uma inédita mudança de paradigma na indicação de juristas ao STF, assim como outros tribunais, pautada pela união de importantes seguimentos da sociedade civil organizada. É preciso, portanto, a partir do comprometimento da própria sociedade, como já ocorreu na hipótese presente, continuar a luta pela legítima interferência e pela democrática participação popular junto aos poderes constituídos. O movimento já é vitorioso, pois representa antes de tudo o reconhecimento da importância do diálogo de todas as instituições públicas com a sociedade civil que reclama a abertura de novos e mais efetivos canais de interlocução. A luta, pois, continuará! É bem verdade que nem todos desejam ou estão preparados para ruptura da constante manipulação do poder. O progresso e as mudanças democráticas, certamente possuem inimigos. Lembrando John F. Kennedy: “O progresso é uma bela palavra. Mas o seu impulso vem da mudança. E a mudança tem inimigos”.
Além de tudo isso, as percepções relativas à realidade social e política do país são muitas vezes diversas e distintas. Para o correspondente, basta um aperfeiçoamento na sabatina do Senado, sendo a escolha presidencial democrática e ponto final. Do contrário, segundo assevera, só considerando o eleitor brasileiro inimputável, o que se recusa a fazer. Ora, como se disse alhures, a questão não é formal, pessoal ou pontual, mas sim estrutural, de origem prática e cultural. A análise desta complexa questão não pode ser simplista, limitada, superficial ou tendenciosa.
Posso estar equivocado, mas tenho uma percepção diversa dos acontecimentos. Vejo que o fenômeno da corrupção no Brasil possui um caráter essencialmente cultural. E isso ocorre em virtude da adoção de um modelo presidencial centralizador, que permiti a formação de uma estrutura incompatível com a consideração de interesses sociais, difusos e coletivos, avessa, portanto, à interferência e à participação popular. A corrupção quando institucionalizada, não é causa, mas sim efeito da incorporação pelos indivíduos de valores sociais negativos. Somente por meio de um processo de interferência e de participação popular voltado para o pleno exercício responsável da cidadania, é que se poderá alcançar um efeito prático e modificador da realidade atual, consubstanciada na falta de cultivo de uma ética social, resumida na esperteza individual e no favorecimento privado.
Por fim, analisando a indagação que dá origem ao título antecedente, resta responder qual democracia seria melhor? A minha ou a alheia? Não permitir que qualquer indivíduo manifeste livremente suas ideias significaria desrespeitar a livre manifestação do pensamento, compatível com a democracia e recomendada por uma concepção atraente do Estado de Direito, por argumentos de princípios, como diria Ronald Dworkin. O Estado de Direito, na concepção que acreditamos, enriquece a democracia ao acrescentar o diálogo franco, independente e responsável, um fórum de debates, e isso é importante, não somente porque a verdade pode ser alcançada, mas porque este debate confirma que a verdade é uma questão de respeito aos posicionamentos individuais, não, arbitrariamente, a reprodução de conceitos padrões e de interpretações manipuláveis. A resposta, portanto, é simples. Nem uma, nem outra, ou melhor, ambas. Eis a melhor democracia, aquela formatada a partir da consideração das idéias de todos!

by Affonso Ghizzo Neto é promotor de Justiça em Santa Catarina, mestre pela UFSC, professor da Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, professor da Escola do Ministério Público e idealizador do projeto nacional “O que você tem a ver com a corrupção?”.

Disponível em: http://www.avozdocidadao.com.br/debate_escolha_dos_ministros_do_supremo.asp. Acesso em: 27 fev. 2011. 




Salário mínimo e o decreto: constitucional ou não?

Complementando a controvérsia jurídica,
vale a pena conferir esse excelente artigo.

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A inconstitucionalidade da fixação do salário mínimo por decreto


“Se o Presidente da República é favorável a um salário mínimo de cem dólares, por que não o decreta”? – trecho de pronunciamento do então deputado federal Siqueira Campos ao então presidente da República José Sarney, no distante ano de 1987.[1]
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by RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO

1 INTRODUÇÃO


O presente texto reflete breves anotações, mas nem por isso superficiais, acerca da constitucionalidade do conteúdo do PL n° 382/2011. Este projeto de lei, de iniciativa do Poder Executivo, visa fixar o valor do salário mínimo para 2011, já definindo os critérios de reajuste até 2015, cujos valores seriam anualmente fixados por decreto, e determinando que se repita o procedimento em 2015. Estes são os pontos polêmicos da proposta legislativa, e que alimentam o debate em torno da sua constitucionalidade.
Para analisar a conformação constitucional do projeto de lei, fez-se breve análise histórica sobre a instituição de um salário mínimo no Brasil, a forma de fixação de seu valor e a alteração impressa a partir da Constituição de 1988. Ao se fazer esta digressão histórica, não passou despercebida a implantação do atual modelo democrático no Brasil e a sua consolidação após a promulgação do texto constitucional. Depois, demonstrou-se a repercussão jurídica da fixação do valor do salário mínimo em outras searas jurídicas, além do campo dos direitos sociais e até da economia.
A contextualização histórica e jurídica mostrou-se necessária a evitar que o debate sobre a constitucionalidade da medida repousasse tão só na literalidade do dispositivo constitucional. Com isso realizou-se propriamente a hermenêutica constitucional. Enfrentou-se, em seguida, todas as teses que vêm sendo publicamente expostas em sentido contrário às conclusões que são defendidas neste texto.

Leia na íntegra ....
Disponível em: < http://www.osconstitucionalistas.com.br/2009/11/os-notaveis-com-paulo-gustavo-gonet.html>. Acesso em: 27 fev. 2011.




AGU: reajustar mínimo por decreto é constitucional

Eis um bom debate: constitucional ou inconstitucional?
Com a palavra final, o STF.

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Parecer divulgado há pouco pela Advocacia-Geral da União (AGU) sustenta que é constitucional a correção do salário mínimo por meio de decreto, e não por projeto de lei, conforme estabelece a proposta que elevou o piso salarial para R$ 545, aprovada esta semana pelo Senado. Atualmente o mínimo é corrigido por meio de projeto de lei, proposto pelo Executivo, debatido e aprovado pelo Congresso.
De acordo com o parecer, não há ilegalidade na proposta de alteração feita pelo governo porque os critérios a serem utilizados nos próximos reajustes estão definidos no próprio de lei, que definiu a política do salário mínimo até 2015 e elevou o piso este ano.


“Bem entendido, não haverá por parte do Executivo o exercício de qualquer fórmula de discricionariedade. É que a lei já determina os critérios que serão eventualmente utilizados, no que se refere aos cálculos que deverão ser feitos”, diz o texto, assinado pelo consultor-geral da União, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy.
“Há referências à utilização de índices de INPC e de IBGE. É regra intensamente debatida e exaustivamente coberta pelos meios de comunicação. Os índices estão fixados na no projeto de lei que se analisa, e que se recomenda que seja sancionado pela Senhora Presidenta da República”, complementa o documento.
Alvo de críticas da oposição, a mudança será contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma ação direta de inconstitucionalidade está sendo preparada pelo PPS, em conjunto como o PSDB, o DEM e o PV, para contestar o reajuste do mínimo por decreto. A ação deve ser apresentada assim que a presidenta Dilma Rousseff sancionar a nova lei, o que deve ocorrer até a próxima segunda-feira (28). Caso o texto seja sancionado até lá, o mínimo de R$ 545 entrará em vigor a partir de março.
“Assim, sustentando que o projeto submetido para análise é compatível com o contexto de constitucionalidade e de legalidade que informa a espécie, bem como com os requisitos dispostos na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, encaminho o presente expediente para o Senhor Ministro de Estado Advogado-Geral da União, para próprios e intrínsecos fins”, conclui o parecer da AGU.

by Edson Sardinha

Leia ainda:










Prudências, ousadias e mudanças necessárias no STF

Este texto sobre o Direito Constitucional faz parte da Retrospectiva 2010, série de artigos sobre os principais fatos nas diferentes áreas do Direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.


Introdução

A resenha que se segue está dividida em duas partes. Na Parte I, faz-se a retrospectiva de alguns fatos relevantes, bem como o levantamento e a análise crítica de algumas das principais decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no período. Foi escrita em colaboração com Eduardo Mendonça, mestre e doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janerio (UERJ). Na Parte II, procede-se a uma apreciação dos métodos de deliberação do STF para, ao final, apresentarem-se duas sugestões de mudança. Para essa segunda parte, contei com a colaboração de Patrícia Perrone Campos Mello, igualmente mestre e doutoranda pela UERJ.

Parte I

Fatos e decisões relevantes

Luís Roberto Barroso
Eduardo Mendonça[2]

Judicialização do Processo Eleitoral

O processo eleitoral dominou a agenda política de 2010. Junto com ele, ora como coadjuvante, ora como protagonista, esteve o Poder Judiciário. Em um ano no qual foi necessário declarar a constitucionalidade do humor, repetiu-se a história recente: algumas das controvérsias jurídicas e morais mais importantes tiveram seu capítulo final no Supremo Tribunal Federal. Nas primeiras resenhas que escrevi para o ConJur, lá se vão alguns anos, a judicialização da vida era tratada como um fenômeno novo, que causava certo espanto a muitos observadores. Pois já não é assim. A presença de juízes e tribunais nas manchetes jornalísticas incorporou-se à rotina da democracia brasileira. Há aspectos típicos e atípicos nessa expansão judicial, que tem sido objeto de vasta literatura nacional e internacional[3].
Um outro aspecto dessa realidade, menos explorado, envolve a percepção de que os atores políticos passaram a organizar suas disputas (também) em torno de categorias jurídicas, valendo-se da linguagem do Direito e dos direitos em seu próprio discurso. Esse é um bom indício de que a sociedade começa a incorporar ao seu imaginário uma dose de sentimento constitucional genuíno e preocupações com a legalidade. É bom que seja assim. A Constituição de 1988, com todas as suas circunstâncias, contém um bom projeto de país nos seus valores e nos seus propósitos. É fora de dúvida, no entanto, que ainda enfrentamos disfunções atávicas, como o patrimonialismo, o oficialismo e certa escassez de virtudes republicanas. Mas a demanda por mais legitimidade democrática e por melhor administração pública tem aumentado significativamente. E já há vitórias a celebrar: as crises políticas têm sido enfrentadas dentro da ordem institucional em vigor e com a participação do Judiciário. Já ninguém pensa em chamar as tropas.
Nos dois tópicos que se seguem, faz-se um breve levantamento de fatos relevantes ocorridos no âmbito do direito constitucional, bem como uma seleção de alguns casos emblemáticos julgados nesse ano judiciário. Um observador atento notará um Supremo Tribunal Federal que alterna momentos de maior intervenção na vida política com outros de mais autocontenção. Como é próprio, aliás, de um tribunal constitucional. A vida é feita de prudências e ousadias. A ênfase em uma ou outra compõe a complexa e dinâmica equação de poder no constitucionalismo democrático, que procura conciliar soberania popular — isto é, vontade das maiorias — com limitação do poder, vale dizer, respeito aos direitos fundamentais e à legalidade.

Alguns fatos dignos de nota

1. Emendas constitucionais aprovadas em 2010

Quatro emendas constitucionais foram aprovadas em 2010 (63 a 66). Passa-se a um breve comentário sobre cada uma delas. A Emenda Constitucional 63, de 4 de fevereiro de 2010, alterou o parágrafo 5º do artigo 198, que já impunha ao legislador federal o dever de editar lei dispondo sobre o regime jurídico e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate a endemias. Pela nova redação, a lei deverá estabelecer um plano de carreira e um piso salarial nacional, impondo-se a União o dever de prestar assistência financeira aos demais entes para que este possa ser cumprido.
A Emenda Constitucional 64, de 4 de fevereiro de 2010, alterou o artigo 6º, explicitando o direito social fundamental à alimentação. Embora se possa dizer que tal conteúdo já estaria implícito no direito à saúde e no próprio princípio da dignidade da pessoa humana — constituindo uma das prestações mais elementares do chamado mínimo existencial —, a menção expressa tem valia simbólica. A Emenda Constitucional 65, de 13 de julho de 2010, alterou a denominação do Título VII, da Constituição, que passou a mencionar, de forma específica, o jovem. Do ponto de vista (pouco mais) substancial, foi acrescentado um parágrafo 8º ao artigo 227, determinando ao legislador que edite: (i) o estatuto da juventude, destinado a regular direitos específicos desse segmento da população; e (ii) o plano nacional de juventude, de duração decenal, cuja função seria articular os diversos níveis do Poder Público para a execução de políticas públicas.
Por fim, a Emenda Constitucional 66, de 13 de julho de 2010, alterou o parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição, que dispõe sobre o divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos. A alteração merece destaque, do ponto de vista teórico, por afastar o viés claramente paternalista do texto original. Embora o Poder Público possa adotar medidas razoáveis para estimular ou desestimular determinados comportamentos, tendo em vista a promoção de valores ou interesses sociais, tais restrições nunca serão banais, exigindo justificação consistente, baseada em argumentos de razão pública[4].
Essa ressalva ganha ainda mais força em se tratando de questões existenciais, como as que envolvam o estabelecimento, manutenção e dissolução de vínculos conjugais. No plano moral, certamente é possível sustentar a posição de que o casamento e as demais formas de união civil não devem ser banalizadas, sendo recomendável que os casais reflitam cuidadosamente antes de assumir vínculos e, uma vez que os tenham assumido, busquem superar suas eventuais diferenças. No entanto, não parece legítimo que o Estado imponha essa ou qualquer outra visão acerca do tema, forçando duas pessoas a permanecerem formalmente casadas por qualquer período que seja.

2. Súmulas Vinculantes aprovadas em 2010

O STF editou três novas Súmulas Vinculantes em 2010. São elas: Súmula Vinculante 28: “É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário”; Súmula Vinculante 29: “É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra”; e Súmula Vinculante 31: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza — ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
O tribunal chegou a aprovar uma quarta Súmula Vinculante, de número 30[5], que assentava a inconstitucionalidade de leis estaduais que, ao conceder incentivos fiscais, promovam a retenção da parcela de arrecadação a que os Municípios façam jus. A publicação dessa Súmula foi suspensa para maior reflexão da Corte por sugestão do ministro Dias Toffoli, que identificou precedentes envolvendo situação um pouco diversa, mas que mereceria tratamento similar. Trata-se das hipóteses em que o Estado admite o pagamento do tributo por meio da dação de bens em pagamento, sem que reparta essa forma de arrecadação com os municípios.

3. A mudança na Presidência do Supremo Tribunal Federal

A posse do ministro Cezar Peluso na presidência do STF trouxe, como previsível, uma mudança de estilo. Seu antecessor, ministro Gilmar Mendes, cultivou o hábito de pronunciamentos rotineiros à imprensa, nos quais comentava não apenas questões afetas à Corte, como também temas políticos e atualidades em geral. Sob críticas e aplausos, conforme a visão de cada um, introduziu um certo ativismo extrajudicial, que não tinha precedente. O ministro Cezar Peluso, magistrado de carreira, segue uma tradição de maior discrição, em que o juiz fala, como regra, nos autos do processo. Sua ênfase tem sido em questões internas do Judiciário e na defesa do padrão de remuneração da magistratura e dos servidores do Judiciário, o que fez de maneira desassombrada e enfrentando as críticas previsíveis. Há menos de um ano no cargo, ainda não é o caso de um balanço mais abrangente.

Alguns destaques na jurisprudência constitucional de 2010

1. Manutenção da Lei de Anistia (ADPF 153/DF, Rel. Min. Eros Grau, DJe 06 ago. 2010)

A ADPF 153, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pretendia: (i) atribuir à Lei 6.683/79 (Lei da Anistia) interpretação conforme a Constituição para declarar que a anistia concedida aos crimes políticos ou conexos praticados durante o regime militar não se estenderia aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos; ou (ii) que fosse declarado que a Lei da Anistia não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988. O fundamento dos pedidos era o de que a anistia irrestrita aos agentes do Estado teria violado inúmeros preceitos fundamentais. Duas alegações merecem destaque especial.
Em primeiro lugar, o requerente sustentou a ocorrência de ofensa ao artigo 5º, XXXIII, que contempla o direito fundamental a receber informações de interesse público e particular dos órgãos públicos. Por esse argumento, a anistia concedida a pessoas indeterminadas teria impedido ou dificultado o acesso à verdade. Em segundo lugar, a dignidade das vítimas e do povo brasileiro em geral teria sido usada como moeda de troca em uma transação política, negociando-se a impunidade dos criminosos de Estado pela transição ao Estado democrático de direito. Ambos os fundamentos foram rejeitados por maioria de votos, vencidos os ministros Carlos Britto — que concedia interpretação conforme a lei para exigir que o Judiciário fizesse uma análise caso a caso —, e Ricardo Lewandowski, que afastava a incidência da lei em relação aos crimes de tortura.
A maioria foi liderada pelo voto do relator, ministro Eros Grau, que destacou a natureza política do compromisso consubstanciado na Lei de Anistia, firmado pelas forças políticas então atuantes para tornar possível a redemocratização. Não caberia ao STF modificar as bases desse compromisso para, reduzindo o alcance expresso da anistia concedida, excluir da sua incidência os crimes comuns praticados sob motivação política. O reconhecimento dessa realidade histórica não importaria transação com o princípio da dignidade humana, tampouco seria incompatível com o repúdio à tortura e às demais formas de tratamento degradante. Prevaleceu, igualmente, o entendimento de que não haveria barreira intransponível ao conhecimento da verdade, cabendo ao Estado fornecer as informações pertinentes ao período.
Na vida existem missões de justiça e missões de paz. O STF optou pela segunda. Como é natural, essa decisão não impede a eventual responsabilização do Estado brasileiro no plano internacional. Em decisão proferida em 14 de dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direito Humanos condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas na região do Araguaia, entre 1972 e 1974. A Corte considerou que as disposições da Lei da Anistia que impedem a apuração e julgamento desses fatos seriam incompatíveis com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos[6].

2. Aplicabilidade imediata da “Lei da Ficha Limpa" (RE 631.102/PA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 9 nov. 2010)

No caso mais polêmico de 2010, o STF acabou por considerar constitucional e passível de aplicação imediata a Lei Complementar 135/2010, que introduziu novas hipóteses de inelegibilidade. A chamada Lei da Ficha Limpa, dotada de respaldo social maciço, originou-se de iniciativa popular capitaneada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Como era de se esperar, candidatos afetados pelas novas regras foram à Justiça Eleitoral questionar a própria validade da lei e/ou sua aplicabilidade já às Eleições de 2010, sob dois fundamentos principais: (i) a nova lei atribuiria consequências jurídicas negativas a fatos ocorridos antes da sua edição, constituindo hipótese inconstitucional de retroatividade; e (ii) a lei violaria de forma direta o art. 16 da Constituição, que impede à modificação das regras eleitorais há menos de um ano das eleições.
Em decisão majoritária, o Tribunal Superior Eleitoral considerou a lei válida e desde logo aplicável, entendendo que as regras de inelegibilidade não fariam parte do processo eleitoral propriamente dito, mas sim de uma etapa preparatória logicamente anterior. O TSE afirmou, ainda, que não haveria retroação no ato de se aplicar de forma imediata as novas regras de inelegibilidade, não existindo, por parte dos candidatos, qualquer direito adquirido à condição de elegibilidade que porventura ostentassem antes do advento da LC 135/2010. Contra essa decisão, foram interpostos diversos recursos extraordinários, tendo o STF reconhecido a repercussão geral da questão constitucional em debate[7].
Ao apreciar a questão, num julgamento marcado por longo e acirrado debate, o STF se dividiu em dois blocos. O primeiro — formado pelo relator, ministro Carlos Britto, e pelos ministros Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia — sustentou a validade e a aplicabilidade imediata da lei, confirmando o acórdão do TSE. Em sentido contrário, entendendo que a lei somente poderia ser aplicada a partir das próximas eleições, votaram os ministros Cezar Peluso, Marco Aurélio, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Configurado o empate, o tribunal passou a um longo debate acerca da fórmula adequada para a resolução do impasse. Após ser descartada a atribuição de um segundo voto ao presidente da Corte — medida prevista no artigo 13, IX, do Regimento Interno[8], de constitucionalidade duvidosa — decidiu-se pela manutenção da decisão proferida pelo TSE, que reconhecera a aplicabilidade imediata da Lei da Ficha Limpa.
Tal solução, adotada por uma Corte dividida, naquela situação, de forma irreconciliável, justifica um comentário à parte. Uma vez mais o STF foi chamado a proferir a palavra final em uma questão política de importância capital. De certa forma, é possível dizer que o tribunal testou e confirmou seu próprio prestígio, uma vez que sequer foi cogitada a possibilidade de se desrespeitar ou contornar a decisão da Corte, mesmo quando pareceu bastante palpável a hipótese de se decidir pela não-aplicabilidade da lei, contrariando o sentimento social mais do que dominante. É bom que seja assim.
A jurisdição constitucional cresce em importância justamente nos momentos em que é necessário contrariar as maiorias em nome dos valores fundamentais de uma dada sociedade ou mesmo do processo civilizatório. O equilíbrio entre o devido respeito à política majoritária e a preservação de tais valores é tênue e sujeito à possibilidade permanente de revisão. A interpretação jurídica produz algumas certezas positivas, outras negativas, e muitas zonas cinzentas. Um Tribunal Constitucional deve lutar pelas certezas — que serão, naturalmente, as suas certezas — e saber escolher os cinzas certos. Em muitos casos, porém, deverá reconhecer a hora de permitir que a sociedade escolha o seu próprio caminho razoável. Como regra — e seria possível cogitar inúmeras exceções mais do que defensáveis — uma Corte dividida deve pensar duas vezes antes de sobrepor o seu juízo a uma decisão emanada do processo político.

3. Possibilidade de se decretar a prisão preventiva de Governador de Estado (HC 102.732/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 7 mai. 2010)

Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal manteve a prisão preventiva do governador do Distrito Federal, decretada pelo Superior Tribunal de Justiça sob o fundamento de que o Chefe do Executivo estaria interferindo na investigação criminal que se encontrava em curso. O precedente merece destaque tanto por sua enorme repercussão política, quanto por ter servido para que o STF reafirmasse, agora em concreto, o caráter excepcional das regras constitucionais que estabelecem a irresponsabilidade penal relativa do Presidente da República (art. 86, § 4º) e sua imunidade contra a prisão (art. 86, § 3º). No entendimento da Corte, inicialmente veiculado no julgamento da ADI 1.020/DF, tais previsões encontram-se em tensão permanente com o princípio republicano e, por isso mesmo, devem receber interpretação restrita, não sendo extensíveis aos governadores.
Vale a ressalva, porém, de que ainda subsiste formalmente, na jurisprudência do STF, o entendimento de que as Constituições estaduais podem condicionar o recebimento de denúncia contra o governador à autorização da Assembleia Legislativa, de forma simétrica ao que dispõe o artigo 51, I, da Constituição Federal[9]. Um dos argumentos sustentados pela defesa do então governador José Roberto Arruda foi o da incompatibilidade entre este entendimento e a possibilidade de prisão preventiva, que seria um minus em relação ao recebimento de denúncia e a consequente instauração de processo criminal. Ainda que não haja uma contradição formal entre as duas situações — que envolvem a interpretação de dispositivos distintos —, é fora de dúvida que elas não convivem bem. O Supremo terá a oportunidade de analisar o tema e, se for o caso, rever sua jurisprudência, em duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pelo Procurador-Geral da República[10].

4. Pedido de intervenção no Distrito Federal (IF 5.179/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 8 out. 2010)

Trata-se de precedente que merece destaque pela repercussão política e por seu desfecho, que confirmou a excepcionalidade da intervenção federal. A crise política que levou à prisão preventiva do governador do Distrito Federal tornou-se ainda mais grave quando veio à tona o possível envolvimento de inúmeros deputados distritais. Criou-se, assim, um impasse no processo de responsabilização política do Chefe do Poder Executivo, que deveria se desenrolar perante a Casa Legislativa. Diante desse quadro, o Procurador-Geral da República ingressou com ação direta interventiva por alegada violação aos princípios republicano e democrático, bem como ao sistema representativo.
No momento em que foi proposta, a ação parecia fadada à procedência, com todas as implicações negativas associadas a uma intervenção federal plena, com afastamento dos Poderes constituídos. A primeira sob a Constituição de 1988[11]. No entanto, em um exercício de sensibilidade política e autocontenção, o STF aguardou os desdobramentos naturais da crise, que já chegara a um ponto de ruptura espontânea. Com a renúncia do Governador, o próprio sistema político se reorganizou e assumiu um compromisso de reconstrução de sua legitimidade democrática. Nesse novo contexto, a Corte, por maioria, entendeu que a medida drástica da intervenção federal seria agora inadmissível, uma vez que os diversos Poderes e instituições públicas competentes teriam desencadeado, no desempenho de suas atribuições constitucionais, ações adequadas para restabelecer a normalidade institucional.

5. Humor e liberdade de imprensa (ADI 4.451/DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 13 set. 2010)

O STF referendou medida cautelar concedida pelo ministro Carlos Britto[12], que havia suspendido a eficácia de dispositivos da Lei 9.504/97[13], os quais impunham restrições às emissoras de rádio e televisão quanto à divulgação de charges, sátiras ou outras formas similares de expressão humorística tendo por objeto candidatos, partidos ou coligações políticas. O Tribunal entendeu que o humor – ainda quando seja ácido ou até de mau gosto – constitui uma forma legítima de expressão e de informação, protegida pelos artigos 5º, IV, IX e XIV, bem como pelo artigo 220, da Constituição de 1988. A decisão vem se somar a uma consistente linha jurisprudencial do STF em favor da ampla liberdade de expressão e, com especial destaque, de imprensa[14].

6. Quebra de sigilo bancário por requisição direta da Receita Federal (AC 33/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 2 dez. 2010)

Ao contrário da liberdade de expressão, os limites da privacidade em face do próprio Estado ainda se encontram em fase de definição. Na sessão de 24 de novembro de 2010, o tribunal negou referendo a uma medida liminar concedida, em 2003, pelo ministro Marco Aurélio, a qual suspendera a aplicação de dispositivos da Lei Complementar nº 105/2001 que conferem à Receita Federal a prerrogativa de requisitar informações protegidas pelo sigilo bancário diretamente às instituições financeiras, afastando a necessidade de autorização judicial. A posição majoritária, à qual aderiram cinco ministros, foi no sentido de que a hipótese não constituiria quebra de sigilo, uma vez que as informações teriam de ser preservadas pela própria Receita, vedando-se sua divulgação pública.
No julgamento definitivo da questão, em 15 de dezembro de 2010, o ministro Gilmar Mendes manifestou sua mudança de entendimento, alinhando-se à posição defendida pelos ministros Marco Aurélio, Cezar Peluso, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Inverteu-se, assim, a maioria verificada no julgamento anterior. Com o respeito devido e merecido aos ministros que sustentaram a posição minoritária, a decisão final adotou a leitura adequada do instituto do sigilo de dados, que se insere no rol de garantias constitucionais à privacidade. Com efeito, não parece razoável a premissa de que não há direito a sigilo em face do próprio Estado, como se este tivesse a prerrogativa de exercer uma supervisão constante da vida privada.
Na verdade, a experiência histórica — remota e recentíssima — demonstra que muitas vezes é o próprio Poder Público que invade o espaço reservado à vida privada, por fundamentos os mais diversos. Mesmo quando estes sejam legítimos, como o interesse em se evitar a sonegação ou outros desvios, é preciso manter salvaguardas. A limitação ao poder do Estado para proteger direitos fundamentais é, precisamente, o objetivo central do constitucionalismo. Não fica de pé, portanto, a ideia — típica de um Estado policial — de que o acesso às informações por parte de órgãos públicos não constituiria quebra de sigilo.
No Brasil, sob a Constituição de 1988, tem prevalecido a compreensão de que a quebra dos sigilos depende, como regra geral, de decisão proferida pelo Poder Judiciário, devidamente motivada. Impede-se, assim, a banalização das devassas à vida privada, uma vez que a autoridade interessada na obtenção dos dados passa a ter o dever de demonstrar, para um julgador imparcial, os indícios de anormalidade que justificam a restrição ao direito fundamental ao sigilo[15]. Ao confirmar essa orientação — ainda que de forma oscilante —, o STF manteve essa lógica e impediu que a quebra de sigilo fosse convertida em medida cotidiana da administração tributária.

Parte II

Modelo decisório do Supremo Tribunal Federal e duas sugestões de mudança

Luís Roberto Barroso
Patrícia Perrone Campos Mello[16]

Deliberação e processo decisório

O Poder Judiciário, na maior parte das democracias do mundo, desempenha um papel assemelhado. A função jurisdicional consiste na interpretação e aplicação do Direito vigente para o fim de solucionar litígios. Em alguns países, dentre os quais o Brasil, admitem-se algumas hipóteses em que a jurisdição é exercida fora de situações concretas de conflito, como ocorre nas ações diretas de controle abstrato da constitucionalidade das leis. Como regra, o primeiro grau de jurisdição é exercido por um juiz singular, ao passo que as instâncias recursais são compostas por órgãos colegiados. A uniformidade, todavia, costuma terminar aí. Pelo mundo afora, varia de maneira significativa, no âmbito dos tribunais, o modo de interação entre seus membros e de produção de soluções. Existem diferentes modelos de deliberação — interno e externo — e de construção da decisão final — agregativo e deliberativo.
O modelo de decisão interna, de inspiração europeia, caracteriza-se pela natureza reservada da deliberação, em que não há acesso dos advogados, das partes ou do público em geral à discussão travada entre os membros do órgão judicial. A solução para o caso em julgamento é produzida inteiramente a portas fechadas. A argumentação dos juízes se dá no interior das cortes e seus entendimentos individuais não são expostos ao público. Nos tribunais que seguem este modelo, os principais interlocutores de cada magistrado são os outros magistrados. Raramente há audiências públicas e sustentações orais. Em alguns casos, não há sequer a possibilidade de publicar votos divergentes. As cortes se manifestam como instituição, por meio de decisões únicas, que correspondem ao consenso alcançado após o debate entre seus membros. Acredita-se que o modelo de decisão interna constitui um facilitador da interação e do debate entre os juízes. A não exposição de suas discussões ao público tornaria mais viáveis concessões recíprocas e eventuais mudanças de opinião para a construção de um entendimento comum. Por outro lado, afirma-se, a relação com a sociedade e a possibilidade de controle social ficam reduzidos.
No modelo de decisão externa, de influência norte-americana, parte das discussões é feita de maneira pública. No caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, além da sustentação oral, é possível a arguição dos advogados pelos juízes. Ao final dos debates, há uma conferência interna. Mas cada Justice pode produzir o seu próprio voto ou aderir à posição de outro. É comum a elaboração de votos dissidentes. Nesse arranjo institucional, os juízes, por certo, mantêm uma interlocução entre si; mas, muito frequentemente, eles se dirigem, mesmo, é ao público externo, mandando sua mensagem para a sociedade, os atores políticos, a imprensa e grupos de interesse. Afirma-se que esse segundo modelo tem a virtude de estabelecer um diálogo entre o Judiciário e a sociedade. Por outro lado, a maior exposição dos membros do tribunal à opinião pública dificultaria concessões e mudanças de entendimento, funcionando como um inibidor do poder persuasivo da argumentação. Além disso, não é incomum que a apresentação de votos com razões de decidir distintas prejudique a compreensão do real sentido e alcance do julgado, trazendo dificuldades práticas supervenientes.
O processo decisório, por sua vez, poderá ser deliberativo ou agregativo. O método deliberativo caracteriza-se pela construção conjunta do argumento, mediante prática discursiva que facilite concessões recíprocas entre os julgadores e a produção de consenso. É a fórmula usual no modelo de decisão interna. No método agregativo, diferentemente, a decisão será o produto do somatório de votos individuais, cabendo ao observador interpretar qual foi o entendimento colegiado do tribunal, como geralmente ocorre no modelo de decisão externa. Como intuitivo, essas divisões esquemáticas rígidas têm fim didático e ajudam a visualizar opções institucionais contrapostas. No mundo real, porém, os tribunais combinam características de ambos os modelos.

O modelo decisório do Supremo Tribunal Federal. Problemas e sugestões para sua resolução

Dentre as cortes constitucionais do mundo, é provável que o Supremo Tribunal Federal brasileiro seja o que pratica de forma mais radical o modelo externo e agregativo. De fato, os debates travados pelos ministros são não apenas abertos ao público como amplamente divulgados, inclusive por via da televisão aberta. Por outro lado, a apresentação dos votos individuais, sem qualquer conferência interna prévia, constitui a regra geral. Assim, os julgados da Corte não são veiculados mediante uma decisão unitária, consensual, consistindo na soma de manifestações particulares. Pois bem: o modelo de deliberação pública e votos individuais tem muitas virtudes, inclusive as da transparência, mobilização da sociedade e controle social. Mas precisa ser aperfeiçoado, em nome da clareza e da racionalização dos trabalhos.
O primeiro grande problema a ser superado é que a tese jurídica afirmada pelo Supremo Tribunal Federal, colegiadamente, como razão de decidir, é de difícil identificação em alguns casos. Isso ocorre porque, embora se forme uma maioria no que respeita ao desfecho da hipótese submetida à Corte, cada ministro externa seu próprio entendimento, nem sempre convergente, sobre os fundamentos que justificam tal desfecho. Além disso, as decisões proferidas pelo STF, por serem produto da soma dos votos individuais de seus integrantes, são frequentemente extensíssimas. Isso é especialmente verdadeiro no julgamento de casos de maior repercussão. Há uma opção maximalista que nem sempre é positiva. Em razão dessas especificidades, surge uma outra disfunção: a tendência a prevalecer o voto do relator como expressão da decisão alcançada pela Corte, mesmo quando não tenha havido adesão majoritária a pontos centrais nele expressos, gerando-se uma percepção distorcida do que foi efetivamente decidido. Por vezes acontece o contrário: do voto do relator deixa de constar algo que foi objeto de deliberação majoritária, mas que não correspondia à sua opinião. O ponto é especialmente sensível nos casos em que a decisão do Tribunal tenha eficácia vinculante, sendo necessário determinar exatamente o que deve ser observado pela Administração Pública e pelos demais órgãos do Poder Judiciário.
A primeira sugestão de mudança destina-se a enfrentar essas dificuldades. A providência alvitrada é bastante simples. Após os debates e a votação realizados em sessão pública, e sem prejuízo da apresentação dos votos individuais pelos ministros, o relator do caso deverá: i) redigir uma ementa representativa dos fundamentos e conclusões que obtiveram adesão da maioria; e ii) dela deverá constar a proposição ou tese jurídica que serviu como premissa necessária à decisão da Corte, à semelhança dos holdings do common law. Tal ementa, que poderá ser elaborada na sessão de julgamento ou posteriormente, deverá ser submetida à aprovação dos Ministros que votaram com a posição vencedora. Tomando-se como exemplo a ADPF 46, em que se discutiu a questão do chamado “monopólio postal”, a ementa diria algo assim: “O serviço postal tem natureza de serviço público e não de atividade econômica, sendo legítimo o regime de privilégio estabelecido pela lei em favor da ECT”. Essa é a sugestão, portanto, no que diz respeito à maior clareza do pronunciamento da Corte.
A segunda sugestão é voltada à maior racionalidade do processo deliberativo. Faria enorme diferença se o voto do relator — ou uma minuta dele — circulasse pelos ministros anteriormente à sessão. Isso permitiria que os julgadores que estivessem de acordo com ele, em sua integralidade, simplesmente aderissem. Ou agregassem apenas o que fosse diferente. Com isso, ficariam poupados do trabalho imenso — e desnecessário — de escrever um voto para, no fim, dizer a mesma coisa. Por outro lado, os que divergissem da posição do relator já poderiam comparecer à sessão com sua manifestação, tornando dispensável — ou, no mínimo, menos frequente — o pedido de vista para a elaboração de voto contrário. As sessões plenárias comportariam julgamento de um número maior de processos e os adiamentos decorrentes de vistas seriam reduzidos significativamente.
O Supremo Tribunal Federal, que se tornou um dos protagonistas da democracia brasileira e que tem servido bem ao país, passa por um momento de transformações. A primeira delas está em curso: a redução drástica do número de processos, por meio de mecanismos de racionalização, como é a repercussão geral. A segunda virá com o tempo, com a progressiva percepção de que a leitura do voto em sessão deverá ser abreviada, limitando-se às ideias centrais. A terceira se contém nas propostas aqui compartilhadas: a minuta do voto do relator deverá circular previamente entre os ministros e a ementa do julgado deverá expressar objetivamente a tese jurídica vencedora, sendo submetida à aprovação da maioria que se formou.

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[1] Luís Roberto Barroso é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade de Poitiers (França) e da Universidade Wroclaw (Polônia). Mestre em Direito pela Yale Law School e doutor e livre-docente pela UERJ.[2] Mestre em Direito e Doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Autor do livro A Constitucionalização das Finaças Públicas no Brasil: Devido Processo Orçamentário e Democracia, 2010.
[3] Giselle Cittadino, “Judicialização da política, constitucionalismo democrático separação de Poderes”. In: Luiz Werneck Vianna (Org.). A Democracia e os três Poderes no Brasil, 2002; Luís Roberto Barroso, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do Estado 13:71, 2009, e Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de Direito do Estado 16:3, 2010; e Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contemporânea, 2009, p. 483-502. Há inúmeros grupos de pesquisa em cursos de pós-graduação dedicados ao tema. V. Anais do I Forum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional, 2009. No direito comparado, v., dentre muitos, Ran Hirschl, Towards juristocracy, 2007, e Alec Stone Sweet, Governing with judges – Constitutional politics in Europe, 2000.
[4] O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. Ela consiste na busca de elementos constitucionais essenciais e em princípios consensuais de justiça, dentro de um ambiente de pluralismo político. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo – Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2009, p. 71.
[5] Súmula Vinculante nº 30: “É inconstitucional lei estadual que, a título de incentivo fiscal, retém parcela do ICMS pertencente aos municípios".
[6] Nos termos do comunicado divulgado pela própria Corte Interamericana: “Con base en el derecho internacional y en su jurisprudencia constante, la Corte Interamericana concluyó que las disposiciones de la Ley de Amnistía que impiden la investigación y sanción de graves violaciones de derechos humanos son incompatibles con la Convención Americana y carecen de efectos jurídicos por lo que no pueden seguir representando un obstáculo para la investigación de los hechos del caso ni para la identificación y el castigo de los responsables”.
[7] Como se sabe, o primeiro recurso a ser admitido para julgamento e que deveria servir, portanto, como paradigma, foi o do Ex-Governador do Distrito Federal Joaquim Roriz, que havia renunciado a um mandato de Senador em 2007, diante da iminência de responder a um processo de cassação. Posteriormente, tal recurso perdeu seu objeto em razão da desistência de Joaquim Roriz, que abdicou da candidatura em favor de sua esposa. De toda forma, O STF prosseguiu na análise da matéria no julgamento do recurso extraordinário interposto pelo Ex-Senador Jader Barbalho. A sequência de eventos processuais que levaram à perda de objeto do primeiro recurso e ao julgamento do segundo não apresenta maior relevância para a análise da questão constitucional relevante.
[8] RISTF, art. 13: São atribuições do Presidente: (…) proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Re- gimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de: a) impedimento ou suspeição; b) vaga ou licença médica superior a 30 (trinta) dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o Ministro licenciado”.
[9] A título de exemplo, v. STF, DJe 2 set. 2005, HC 86.015/PB, Rel. Min. Sepúlveda Pertence: “Governador de Estado: processo por crime comum: competência originária do Superior Tribunal de Justiça que não implica a inconstitucionalidade da exigência pela Constituição Estadual da autorização prévia da Assembléia Legislativa. 1. A transferência para o STJ da competência originária para o processo por crime comum contra os Governadores, ao invés de elidi-la, reforça a constitucionalidade da exigência da autorização da Assembléia Legislativa para a sua instauração: se, no modelo federal, a exigência da autorização da Câmara dos Deputados para o processo contra o Presidente da República finca raízes no princípio da independência dos poderes centrais, à mesma inspiração se soma o dogma da autonomia do Estado-membro perante a União, quando se cuida de confiar a própria subsistência do mandato do Governador do primeiro a um órgão judiciário federal. 2. A necessidade da autorização prévia da Assembléia Legislativa não traz o risco, quando negadas, de propiciar a impunidade dos delitos dos Governadores: a denegação traduz simples obstáculo temporário ao curso de ação penal, que implica, enquanto durar, a suspensão do fluxo do prazo prescricional. 3. Precedentes do Supremo Tribunal (RE 159.230, Pl, 28.3.94, Pertence, RTJ 158/280;HHCC 80.511, 2ª T., 21.8.01, Celso, RTJ 180/235; 84.585, Jobim, desp., DJ 4.8.04). (...)”.
[10] Trata-se da ADIn 4.362/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, e da ADIn 4.386/SC, cujo relator é o Ministro Gilmar Mendes. Na primeira delas, em que se discute dispositivo da Lei Orgânica do Distrito Federal, o relator negou o pedido de liminar – sob o fundamento de que não seria adequado proferir decisão monocrática contra a jurisprudência atual da Corte –, mas determinou a observância do rito abreviado previsto no art. 12 da Lei nº 9.868/99.
[11] O caso mais recente de intervenção federal plena, com nomeação de interventor, ocorreu em novembro de 1964, sob o apoio de tropas federais e tanques de guerra. Na ocasião, afastou-se o Governador de Goiás, Mauro Borges – que havia apoiado a instauração do governo militar –, sob a alegação de que ele estaria conduzindo um governo de tendências comunistas e subversivas.
[12] Ficaram vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que, nos termos do pedido sucessivo da inicial, deferiam a liminar com fundamento na inconstitucionalidade parcial das normas impugnadas e a elas conferiam interpretação conforme para afastar do ordenamento jurídico: a) “interpretação do inciso II do art. 45 da Lei 9.504/97 que conduza à conclusão de que as emissoras de rádio e televisão estariam impedidas de produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam candidatos, partidos ou coligações” e b) “interpretação do inciso III do art. 45 da Lei 9.504/97 que conduza à conclusão de que as empresas de rádio e televisão estariam proibidas de realizar a crítica jornalística, favorável ou contrária, a candidatos, partidos, coligações, seus órgãos ou representantes, inclusive em seus editoriais”.
[13] Lei nº 9.504/97, art. 45: “A partir de 1º de julho do ano da eleição, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário: ... II - usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito; III - veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes; ... § 4º Entende-se por trucagem todo e qualquer efeito realizado em áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação. § 5º Entende-se por montagem toda e qualquer junção de registros de áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação.”).
[14] Sem prejuízo de a Corte já ter admitido até mesmo a possibilidade de censura – forma mais intensa de restrição – em situações absolutamente excepcionais, como no já célebre caso Ellwanger, em que se determinou a retirada de circulação de livros considerados anti-semitas, por negarem a ocorrência do holocausto. V. STF, DJe 19 mar. 2004, HC 82.424/SC, Rel. originário Min. Moreira Alves, Rel. para o acórdão Min. Maurício Corrêa.
[15] Excepcionalmente tem sido admitida a quebra de sigilo por decisão das CPIs – mantida a exigência de motivação –, mas isso por conta da previsão constitucional expressa de que tais comissões dispõem de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.
[16] Mestre em Direito e Doutoranda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Autora do livro Precedentes: O Desenvolvimento Judicial do Direito no Constitucionalismo Contemporâneo, 2008.


Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2010-dez-28/retrospectiva-2010-prudencias-ousadias-mudancas-necessarias-stf>. Acesso em: 28 dez. 2010


O reajuste da tabela do IRPF e a Constituição

Não atualização do IRPF fere garantias constitucionais

by Walter Alexandre Bussamara

Por muitos já considerada, até mesmo, verdadeiro e velho expediente de nosso governo federal para fins de contínua elevação da (já onerosa) carga tributária, a não atualização da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), por conta dos índices de inflação verificados, agora, em mais este exercício que se passou, de fato, acaba por colidir com garantias atualmente bem constitucionalizadas em nosso ordenamento jurídico, representativas, no que ora nos interessa, dos princípios da capacidade contributiva e da vedação ao confisco[1]. Em relação àquele, é claro o texto constitucional, em seu artigo 145, parágrafo 1º, segundo o qual, “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”.
Como fica fácil de se perceber, então, a referida garantia, que acaba por reforçar o próprio primado constitucional republicano, assentado que é na igualdade tributária, assume verdadeira diretriz em face do exercício da competência tributária pelas pessoas políticas, quando da instituição de impostos: “(...) O princípio da capacidade contributiva hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos” (Roque Carrazza)[2]. Daí conferir-se à capacidade contributiva o status de verdadeiro princípio informador da tributação por meio da aludida modalidade tributária (imposto).
De fato, o primado da igualdade, em matéria tributária, reduzir-se-ia, assim podemos afirmar, justamente, ao princípio da capacidade contributiva, cuja materialização deverá, de rigor, sempre ocorrer, em sua forma objetiva, consideradas as manifestações de riqueza do contribuinte, ou seja, os seus fatos-signos presuntivos de riqueza[3]. Aliás, a supremacia[4] (cogência) deste primado constitucional também nos é luminosamente asseverada, novamente, por Roque Carrazza:
(...) o art. 145, § 1º da CF não encerra mera diretriz programática, incapaz de produzir efeitos, seja junto ao legislador, seja junto ao juiz. Hodiernamente, a doutrina, de um modo geral, está de acordo quanto à natureza obrigatória do vínculo decorrente das normas constitucionais ditas ‘programáticas’ e, destarte, quanto à inconstitucionalidade das leis que as afrontem [5].
Parece-nos pacífico, então, voltando ao tema ora eleito (atualização da tabela do IRPF), estarmos diante de verdadeiro problema de aritmética jurídica, em que o contribuinte, sempre que manifestar riqueza objetiva, será tributado tal como graduado na respectiva legislação tributária.
Queremos com isto significar que a não atualização da tabela do IRPF acaba por criar, por decorrência lógica, em face da paralela atualização monetária que se vê em âmbito de vencimentos laborais, uma falsa ideia de riqueza objetiva, donde uma das seguintes possibilidades, por certo, ocorrerá: 1ª) quem já era contribuinte do IR poderá ser, falsamente, por ele mais onerado ou, 2ª) quem era isento, contribuinte poderá se tornar, especialmente nas faixas mais próximas dos limites legais de isenção.
Seria como que se estivéssemos num contexto de aplicação às avessas do princípio da capacidade contributiva que passaria a se assentar, a bem da verdade e de forma desfigurada, na incapacidade econômica objetiva dos contribuintes então atingidos, em detrimento da segurança jurídica e do próprio poder aquisitivo da moeda conforme concretizado na men legis da normatização contemporânea à (última) data de atualização monetária realizada para fins de cálculo e escalonamento das alíquotas do IRPF. A vitória caminharia ao lado da inflação.
Noutras palavras, a não atualização da tabela do IRPF equivaleria à tributação além da conta, com a atribuição de falso poder aquisitivo, objetivo, à imensidão de contribuintes da nação.
Aliás, há noticias de que o governo federal arrecadará, adicionalmente, apenas por conta desta pseudomatemática, cerca de R$ 5,7 bilhões, em valores que foram sugeridos pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese)[6], ou seja, comodamente, recolher-se-á imposto sem a correspectividade de seus fatos imponíveis tributários próprios, in casu, representados pela manifestação objetiva de poder de riqueza individual.
Por fim, ainda, entendemos que a referida situação acaba por resultar, igualmente, em flagrante ato confiscatório por parte do governo que se apropriará, sem qualquer causa jurídica justa, de propriedade legítima de contribuintes, ou seja, de propriedade alheia (riqueza), em contundente afronta à Constituição Federal, em especial, aqui, ao seu artigo 150, IV, a bem justificar, portanto, as mobilizações sociais que atualmente estão sendo deflagradas e noticiadas.
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[1] Para Geraldo Ataliba, “...princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm de ser prestigiados até as últimas consequências”. República e Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985, pp.6 e 7.
[2] Curso de Direito Constitucional Tributário. 23ª ed., rev., ampl. e at.. São Paulo: Malheiros, 2007, p.87.
[3] Da mesma forma, para Elizabeth Nazar Carrazza, in Progressividade e IPTU. Curitiba: Juruá Editora, 1992, p.48.
[4] Segundo teorizado por Hans Kelsen, a Constituição “representa o escalão de Direito Positivo mais elevado”. Por sua vez, para Gomes Canotilho e Vital Moreira, “(...) a principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela”. Fundamentos da Constituição. Coimbra Editora: Coimbra, 1991, p.45.
[5] Idem ob. cit., pp.93 e 94.
[6] Segundo recente matéria publicada no jornal O Estado de S.Paulo.

Acesso em: 26 fev. 2011.

CPI das tarifas de Energia Elétrica: violação de um direito do consumidor?

O direito do consumidor consagra-se na Constituição - artigo 5º, inciso XXXII, além da regulamentação do próprio Código de Defesa de Consumidor. Apesar disso, configura-se uma violação desse direito o que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) pretende fazer.
Mais uma vez, como ficam os consumidores?
Afinal, cabe ao Estado promover e garantir essa defesa. No caso específico, a ANEEL representa esse poder.
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Deputados querem devolução de R$ 7 bi a consumidor

Fábio Góis
Do Congresso em Foco

Projeto apresentado esta semana obriga empresas de energia elétrica a devolverem contribuição cobrada indevidamente durante sete anos.

Um grupo de deputados quer que as concessionárias de energia elétrica devolvam ao consumidor o que receberam indevidamente durante sete anos. Estimativa feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que um equívoco de cálculo fez com as empresas recebessem R$ 1 bilhão a mais por ano no período de 2002 a 2009. A devolução dos recursos, estimados inicialmente em R$ 7 bilhões, está prevista no Projeto de Decreto Legislativo 10/2011, apresentado na última quarta-feira (23) na Câmara.
Segundo a proposição, as distribuidoras cobraram na conta de luz, durante sete anos, uma contribuição com o pretexto de custear o fornecimento de energia em localidades e sistemas isolados do país. A cobrança foi considerada irregular pelo TCU. No último dia 25 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) confirmou a decisão tomada em dezembro de 2009 de desobrigar as concessionárias de restituir os valores aplicados irregularmente.
A proposta apresentada na Câmara susta “os efeitos normativos” da agência reguladora. Na justificativa do projeto de decreto legislativo, os deputados que assinam a proposta acusam a Aneel de “negar o direito dos consumidores brasileiros de serem ressarcidos do erro da metodologia de cálculo que elevou ilegalmente as tarifas de energia elétrica” entre 2002 e 2009.
“Mas esse cálculo não levou em conta o crescimento do número de consumidores e as distribuidoras arrecadaram mais do que foi efetivamente gasto na manutenção desses sistemas. Essa arrecadação excedente é proibida pelas regras da Agência Nacional de Energia Elétrica”, aponta a assessoria do deputado Eduardo da Fonte (PP-PE), um dos responsáveis pela apresentação do projeto. O parlamentar pernambucano disse ao Congresso em Foco que a iniciativa já reúne 180 assinaturas de parlamentares na condição de “co-autores” da matéria.
“No plenário, não tenho a menor dúvida de que vamos conseguir a aprovação, até porque é um direito dos consumidores brasileiros. Temos um apoiamento quase unânime”, avalia Eduardo, para quem o valor cobrado indevidamente dos consumidores pode dobrar, feitas as correções inflacionárias. “Não menos que R$ 7 bilhões – o Tribunal de Contas da União [TCU] disse que a dívida estava calculada em R$ 1 bilhão por ano [entre 2002 e 2009]. Mas esse valor pode chegar a R$ 15 bilhões. Só vamos ter essa certeza quando esse levantamento for finalizado pela Aneel.”
Segundo a justificativa do projeto de decreto legislativo, o pagamento indevido de tarifas fere dispositivos da Constituição, do Código de Defesa do Consumidor e da própria Aneel, na definição de direitos e deveres do consumidor, “em especial do direito ao ressarcimento pelos valores cobrados indevidamente (artigos 76 a 78 da Resolução Aneel n.º 456, de 2000; e o artigo 113 da Resolução Aneel nº 414, de 2010)”. Eduardo da Fonte diz que, em vez de funcionar como agência reguladora, a Aneel demonstra estar a serviço das distribuidoras de energia elétrica.


“Não foi erro. Foi roubo”
O caso teve início em 2007, no âmbito da Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) da Câmara. Na ocasião, o deputado Elismar Prado (PT-MG) e alguns membros do colegiado pediram uma auditoria nas contas administradas pelas concessionárias de energia elétrica.
Os indícios de irregularidade resultaram na instalação da CPI das Tarifas de Energia Elétrica, que, entre outras resoluções, levaram ao indiciamento do diretor-geral da Aneel, Nelson Hubner, junto ao Ministério Público Federal. Segundo Eduardo da Fonte, ele “obstruiu o trabalho da CPI por não ter fornecido os dados referentes às cobranças indevidas” do período 2002-2009. Também foi determinado que cerca de 20 agentes da agência fossem investigados, mas por outras questões.
No entanto, depois de reunião dos membros do colegiado, decidiu-se que as investigações deveriam ser estendidas a todos os citados no relatório final da CPI – inclusive Hubner, mas sem que o pedido de indiciamento dele fosse levado adiante. Na ocasião, o diretor-geral disse que não poderia ter apresentado os dados sem que a defesa das distribuidoras de energia tivesse sido encaminhada à Aneel.
Em novembro de 2010, o relatório final da chamada CPI da Conta de Luz determinou que a Aneel exigisse das empresas concessionárias a devolução dos valores recebidos indevidamente dos consumidores. Em desobediência ao colegiado, a agência se limitou a executar a revisão dos contratos com 63 distribuidoras, e definiu um novo sistema de reajuste de tarifas que impediria cobranças indevidas. A restituição dos valores não foi determinada pela Aneel, sob o argumento de que, por falta de fundamentação jurídica, as regras do novo contrato não poderiam retroagir. (Grifo nosso).
“Ao se negar a devolver esses valores, eles patrocinaram um calote ao povo brasileiro”, fustigou Eduardo da Fonte, lembrando que, em audiência pública na Câmara, os próprios representantes da Aneel reconheceram o erro e se dispuseram a corrigi-lo, mas sem que os valores fossem repostos. “Na minha avaliação, não foi um erro, foi um roubo. Eles [responsáveis pelas distribuidoras] agiram de má fé”, completou Weliton Prado (PT-MG), que também subscreve o projeto protocolado na Mesa Diretora. Weliton é irmão de Elismar Prado, o ex-membro da CDC.
Weliton disse à reportagem que trabalha no projeto desde antes da posse para a atual legislatura. E garantiu que, mesmo na semana pré-carnavalesca, continuará a conscientizar “o máximo de deputados” em relação à importância da matéria. Ele acredita que, longe de uma ação isolada, o conjunto de deputados em defesa do tema “dará força ao projeto”. “Costumo dizer que o Parlamento é igual a feijão: só funciona na pressão”, diz o petista, ressalvando o papel da imprensa em manter o assunto em evidência.
O Congresso em Foco quis saber a posição da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) sobre o assunto. A assessoria informou que seguidas e longas reuniões, “a portas fechadas”, impediriam que a direção da Abradee, sociedade civil de direito privado, falasse com a reportagem nesta sexta-feira (25). Ainda segundo a assessoria, a entidade está em fase de estruturação em Brasília, uma vez que está em pleno processo de mudança da matriz do Rio de Janeiro para Brasília.
“Tarifa amarela”
Agora, diz Eduardo da Fonte, o objetivo é conseguir a aprovação de “urgência urgentíssima” para a votação do projeto. Para tanto, são necessárias 171 assinaturas (um terço dos 513 deputados), o que levaria a matéria à condição de item prioritário de votações no plenário da Câmara. Mas, além de a pauta estar trancada por diversas medidas provisórias, o provável baixo quorum na semana que antecede o Carnaval deve atrasar as deliberações.
Para passar a valer, o projeto de decreto legislativo deve ser aprovado tanto pela Câmara quanto pelo Senado. Alcançado esse objetivo, não há necessidade de que a matéria seja submetida a sanção presidencial – o texto entra em vigor tão logo as duas Casas legislativas o aprovem em maioria simples (metade mais um dos parlamentares presentes em plenário). No dia em que o documento foi formalizado, apenas o deputado Guilherme Campos (DEM-SP) pediu a exclusão de sua assinatura de adesão à matéria.
O projeto de decreto legislativo é a primeira cruzada dos deputados contra o que consideram abuso das distribuidoras. Weliton Prado diz que apresentará um projeto contestando as chamadas “tarifas amarelas” que, a depender dessas empresas, seriam cobradas com valores diferenciados, referentes ao consumo em horários de pico.
“Isso é uma forma disfarçada de aumentar a conta de luz”, diz o petista, para quem o consumo em horários não concentrados deve ser estimulado por meio de benefícios, e não de penalizações. Em março, adianta o deputado, será realizada uma audiência pública para debater o assunto. Weliton disse ainda que, desde 2007, parlamentares têm impedido que as distribuidoras apliquem as tais tarifas “diferenciadas”.