terça-feira, 21 de maio de 2013

Laicidade democrática e o locus cívico da religião

Inobstante marcos políticos e jurídicos historicamente bem determinados a respeito de temas da vida cívica, muitas esferas, há séculos distinguidas, insistem em ser novamente misturadas.
Seja por ignorância de seus agentes, seja por má-fé, consciente ou não, e por vontade de poder, alimenta-se uma tradição incoerente na qual o juridicamente proclamado se dissocia do faticamente praticado.
Notícias recentes – e recorrentes – sobre as declarações absolutamente intoleráveis de pastores midiatizados e deputados religiosos, cujos nomes são irrelevantes quando o foco é de uma mesma obtusidade de ideias, reacendem o debate sobre os limites da religião e da política.
O espectro de questões envolvidas se assenta em distinções básicas como “Estado” e “Religião”, assim como poder temporal e poder espiritual. Igualmente, em fenômenos sociológicos como a secularização e a laicização, que fixa a laicidade, esta inconteste e vigente qualidade jurídica (normativa e cogente) do Estado brasileiro atual.
O historiador e sociólogo francês Jean Baubérot (“As muitas laicidades”), especialista em secularismo, realiza relevantes distinções que auxiliam a pensar o problema.
Para Baubérot, a religião deve ser compreendida em duas dimensões: uma enquanto predomínio, clericalismo normativo, e outra enquanto recurso: modo de acesso às questões misteriosas da vida, sendo fonte de crenças transcendentes.
A laicidade, por sua vez, consiste na determinação do Estado independente de qualquer culto ou clero, ou seja, a forma da separação Igreja e Estado.
Trata-se da institucionalização de um espaço próprio para a liberdade de todos os cultos, em que se garante a igualdade dos cidadãos independentemente de sua filiação religiosa e se recusa qualquer expressão de religiosidade na esfera pública.
Portanto, pela laicidade se rechaça apenas a religião-predomínio (como norma geral), eis que a religião-recurso é bem jurídico e espaço de liberdade privada a se conservar.
A “laicidade democrática”, neste cenário, é oriunda da soberania popular e em sujeição aos direitos humanos, que expressam valores seculares e republicanos. Caso contrário, haverá uma laicidade autoritária, laicismo odioso que afirma preconceitos religiosos, ou mesmo uma laicidade de ateís­mo. Ambas expressam atitude de imposição de dogmas de Estado, daí a consolidação do agnosticismo estatal.
Baubérot não nega o espaço da religião na vida pública. Para o autor, ela deve contribuir com os debates das questões contemporâneas enquanto importante voz da vida social.
Contudo, os processos institucionais e políticos devem se fazer de modo independente dos determinismos religiosos.
Há, assim, um espaço público da sociedade civil e um espaço público institucional, político e neutro aos confrontos teológicos. A laicidade democrática congrega aportes modernos em sua concepção liberal: as convicções religiosas integram o espaço privado, o Estado é neutro em matéria de religião, devendo assegurar a liberdade religiosa e o pluralismo religioso por meio da isonomia, que assegura a convivência pacífica.
Infelizmente, a vida pública brasileira tem demonstrado graves práticas, exaltando-se o anacronismo histórico de entendimento republicano, assim como das garantias individuais, sobretudo, as de liberdade religiosa.
Os que entendem que o uso de crenças religiosas, na vida política, se trata de exercício regular de um direito, têm interpretado a ameaça desta mesma liberdade por seu uso abusivo e indevido de modo invertido.
O que se crê ser um exercício, na verdade, é um abuso degradante. A confusão de democracia com opinião majoritária é outra marca da mesma ignorância axiológica. Muitas pessoas podem sustentar decisões plenamente anti-democráticas.
Situações como esta são um frontal e, juridicamente, intolerável ataque ao vigente Estado laico. Pretendem reinstituir, sorrateiramente e sem transparência democrática, um retrógrado Estado confessional e de monopólio religioso, o que representa o suplantar da liberdade religiosa, do pluralismo religioso e da virtude cívica da tolerância, ignorando-se séculos de batalhas civis e milhões de vidas ceifadas na construção das igualdades e liberdades democráticas hoje vigentes.
Os parlamentares, por dever constitucional e legal, por função institucional e por compromisso republicano, simplesmente, não devem empregar referência a quaisquer fontes, narrativas, concepções, crenças ou explicações religiosas, porque, redundantemente, o espaço cívico é o espaço da discussão e argumentação segundo as fontes cívicas. Ao fazê-lo, apenas demonstram, conjuntamente aos seus pares, duas faces de uma mesma ignorância: do que seja o Estado e do que seja a Religião.
 
Eliseu Raphael Venturi, advogado, é especialista em direito público e mestrando em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná.
 
 
 

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