Após intensos debates que se alongaram por quase dois anos e 11 sessões de julgamento, o Supremo considerou constitucional a Lei da Ficha Limpa, que torna inelegíveis por oito anos políticos cassados, condenados por órgão colegiado por corrupção, abuso de poder, improbidade ou que renunciaram aos mandatos para evitar uma punição. Fruto de iniciativa popular, a regra já incidirá nas eleições deste ano.
Três são os maiores avanços decorrentes do julgamento do Supremo. O primeiro deles é o reforço do valor constitucional da moralidade administrativa ─ essencial à construção democrática. Ao tratar dos direitos políticos, a Constituição enuncia que a lei poderá estabelecer outros casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo emprego na administração direta ou indireta.
É neste cenário que se insere o clamor popular em defesa da Lei da Ficha Limpa. Como lembrou o Supremo, a inelegibilidade não é uma pena, mas um instrumento para subordinar o político à moralidade, à probidade, à honestidade e à boa-fé.
O segundo avanço é a imposição de limites éticos e jurídicos àqueles que abusam do poder, maculando o estado de direito. Já advertia Montesquieu a máxima de que “todo aquele que tem o poder tende a abusar dele (…). O poder vai até onde encontra limites. Só o poder controla o poder”. O controle popular, exercido pela iniciativa popular (mediante a apresentação do projeto de lei subscrito por mais de 1,3 milhão de eleitores), foi endossado pelo controle jurisdicional exercido pelo Supremo, na afirmação de limites àqueles que corrompem, desvirtuando o princípio republicano. Prevaleceu o contrapoder deflagrado pela democracia participativa e juridicamente legitimado pelo Supremo, que lhe conferiu validade constitucional.
O terceiro avanço é a extraordinária contribuição da Lei da Ficha Limpa para o fortalecimento da democracia, do estado de direito e da chamada “accountability” (exigência de responsabilização e de prestação de contas dos agentes públicos). No Brasil, ainda há o desafio da consolidação do estado de direito em sua vocação mais genuína de que a lei vale para todos, alcançando tanto os mais vulneráveis como os mais poderosos. Na pedagógica lição republicana, ninguém pode estar acima da lei. Apenas em 2010 é que o Supremo, ineditamente, decretou prisão de um deputado federal pela prática de crime ─ passados mais de 20 anos da adoção da Constituição.
Cabe menção, ainda, ao legado dos institutos da imunidade processual dos parlamentares (que permite à Casa legislativa sustar, a qualquer tempo, o andamento da ação penal contra deputado ou senador); do voto secreto nas sessões de cassação de parlamentar (que viola o princípio da transparência e do controle popular, já que a democracia é o governo do poder visível, cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle da opinião pública); e do foro privilegiado (que viola o princípio da igualdade de todos perante a lei, ao determinar que deputados e senadores sejam julgados originariamente pelo Supremo).
Estes institutos são anacrônicos e incompatíveis com o estado democrático. Se, em sua origem, fundamentavam-se na ideia de preservação da independência do Legislativo ─ livrando-o do arbítrio, das ameaças e das pressões comprometedoras de sua atuação ─ na ordem contemporânea estes motivos não mais subsistem. De supostas prerrogativas institucionais do passado, estes institutos convertem-se hoje em verdadeiros privilégios pessoais, contribuindo para a impunidade, com a descrença nas instituições públicas.
O amadurecimento democrático requer transparência, publicidade, moralidade, probidade, honestidade, responsabilização e controle público, especialmente dos detentores de mandato popular. O Brasil ainda ostenta a constrangedora 73ª posição no ranking sobre corrupção elaborado pelo Transparência Internacional em 2011, que mede a percepção da corrupção em 183 países ─ bem distanciado dos vizinhos Chile (22° lugar) e Uruguai (25° lugar).
Neste contexto, a Lei da Ficha Limpa surge como um imperativo do estado democrático, simbolizando uma merecida vitória da cidadania brasileira.
by Flávia Piovesan, procuradora do Estado e professora de Direito da PUC de São Paulo e PR.
Fonte: Jornal O Globo (23 fev. 2012)
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