domingo, 1 de setembro de 2013

Constitucionalizar a felicidade é cura ou placebo?

Pesquisando quais obras de Ronald Dworkin estavam disponíveis na biblioteca do Supremo Tribunal Federal, deparei-me com uma intitulada A infelicidade é necessária[1]. De acordo com esse artigo, temos, atualmente, uma grande necessidade de sermos felizes, ainda que se trate de felicidade artificial, à base de medicamentos.
O texto não é do Ronald Dworkin jurista, professor da NYU falecido recentemente, mas de um homônimo, médico e cientista político — coincidência que talvez tenha sido o motivo pelo qual acabou sendo classificado pela biblioteca. Mesmo assim, seus argumentos fizeram-me pensar sobre um direito que paulatinamente ganha adeptos no constitucionalismo brasileiro: o direito à busca da felicidade.
Sua origem remonta à Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, e foi incluído na Declaração de Independência como direito inalienável do cidadão[2]. Na tradição jurídico-constitucional americana, o direito à busca da felicidade — ou right to pursuit of happiness, como é chamado em inglês — tem vinculação direta com o liberalismo e é um componente a restringir a atuação do Estado. Os Founding Fathers teriam sido precisos ao falar em direito à busca da felicidade, e não em direito à felicidade. Isso significa que o homem tem direito a tomar as ações que acredita serem necessárias para alcançar sua felicidade — e não que outros devam fazê-lo feliz[3].
Por aqui, tramitam, no Congresso Nacional, duas propostas de emenda à Constituição para alterar o artigo 6º e determinar que os direitos sociais ali elencados são essenciais à busca da felicidade. Assim, essa seria possível caso fossem concretizados os direitos à “educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à infância e a assistência aos desamparados”[4].
De acordo com as justificativas apresentadas para essas emendas, pretende-se alcançar não o aspecto subjetivo da busca à felicidade, que tem relação com os sentimentos e o estado de espírito de cada indivíduo, mas seu aspecto objetivo, isto é, a felicidade coletiva, que seria plenamente tutelável pela legislação. A justificativa da PEC proposta no Senado define que “há felicidade coletiva quando são adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade, ou seja, justamente os direitos sociais — uma sociedade mais feliz é uma sociedade mais bem desenvolvida, em que todos tenham acesso aos básicos serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer, dentre outros”.
Não é difícil perceber que a probabilidade de que tenhamos legiões de pessoas infelizes é alta. Se a Constituição Federal prescreve nove direitos sociais como essenciais à obtenção da felicidade e, como amplamente sabido, o estado social brasileiro deixa bastante a desejar, qual o motivo de sua inserção no texto constitucional?
Incluir o simpático direito à busca da felicidade na Constituição nada mais é do que um efeito simbólico, um incentivo à felicidade que os brasileiros pensam que deveriam ter. E é muito mais por efeito alegórico, como reforçador de outros direitos fundamentais, que encontramos o direito à busca da felicidade em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal.
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132[5], que tratou do tema da união homoafetiva, o ministro Ayres Britto comentou que:
Felicidade é um estado de espírito consequente. Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do artigo 1º da CF),e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De autoestima no mais elevado ponto da consciência. Autoestima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente norma da desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 1776) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem serealizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente”. (Grifos nossos).
O ministro então concluiu: “nós daremos a esse segmento de nobres brasileiros (os homossexuais) mais do que um projeto de vida, um projeto de felicidade”.
Esses argumentos evidenciam que é essencial garantir as condições para que os indivíduos tenham as mesmas chances, proteções e garantias. No mesmo sentido, o ministro Marco Aurélio ressaltou: “ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie”.
O ministro Celso de Mello é, até o momento, o membro da Corte que mais mencionou o direito à busca da felicidade em suas decisões. No julgamento da ADPF 132, definiu que esse direito é “verdadeiro postulado constitucional implícito, como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.” Admite, assim, que o direito à busca da felicidade é decorrente do princípio da dignidade humana e de outros direitos essenciais. Nesse sentido:
“Esta decisão — que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de apenas alguns”. (Grifos nossos).
Enfatizou que seu voto tem “suporte legitimador em princípios fundamentais, como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade e da busca da felicidade”. E completou que este direito “assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.”
Percebe-se, assim, que o direito à busca da felicidade nada mais é do que o resultado da efetiva garantia aos direitos essenciais do indivíduo, como igualdade, livre desenvolvimento da personalidade, liberdade de expressão. É a consequência de um Estado Democrático de Direito funcionando em seu pleno vigor. Garantir o direito à busca da felicidade é seguir os preceitos constitucionais clássicos, já presentes no nosso texto constitucional e bem guardados pelo Supremo Tribunal Federal ao cumprir sua missão institucional — o que inclui agir em caráter contramajoritário. Não haveria nenhuma novidade nisso.
Ademais, como reforçado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, o princípio da dignidade humana não deve ser invocado de modo inflacionário, a fim de evitar sua desvalorização e sua utilização de forma panfletária[6]. Ou seja, não deve ser constantemente utilizado como base para obtenção de determinado direito. Na mesma linha, também os direitos fundamentais devem ser resguardados para que não caiam na vala comum e se tornem meros argumentos retóricos. Não deveria haver proliferação de direitos fundamentais obviamente decorrentes do princípio da dignidade humana e da concretização de direitos fundamentais já existentes na Constituição.
No Brasil, nosso texto constitucional não prevê apenas um elenco de direitos especiais de liberdade, mas também um direito geral de liberdade, que, em conjunto com o artigo 5º, parágrafo 2º, estabelece um sistema aberto que consagra outros direitos não previstos de forma explícita[7]. É desnecessário, assim, positivar um novo direito para cada possibilidade de desenvolvimento da liberdade e da personalidade individuais não previstos na Constituição.
De acordo com Dworkin, o médico, “a felicidade artificial é aquela que não combina com os fatos da própria vida. A pessoa anda mal das pernas, não está vivendo como gostaria — ou como pensa que deveria estar vivendo — e ainda assim, por meio de remédios, tem a sensação de felicidade.”. Guardadas as devidas proporções, inserir o direito à busca da felicidade na Constituição Federal seria uma espécie de paliativo desnecessário, praticamente um placebo.
Não cabe ao nosso texto constitucional tornar a busca à felicidade obrigação social ou consequência da concretização de direitos sociais. Deve-se garantir, acima de tudo, que a dignidade humana seja preservada em suas diferentes dimensões. A constitucionalização do direito à busca da felicidade, sem a devida garantia efetiva de preceitos essenciais, parece dispensável. É preciso atentar-se para essa questão, caso contrário, teremos uma verdadeira depressão coletiva constitucionalizada.

[1] DWORKIN, Ronald. A infelicidade é necessária. In: Época, n. 467, p. 92-93, 2007.
[2] O direito à busca da felicidade já foi mencionado pelos textos constitucionais da França, do Japão, da Coreia do Sul e do Butão, além de ser objeto de resolução da Organização das Nações Unidas, que, em 2011, sugeriu que os governos elaborem políticas públicas visando à felicidade das pessoas. Conferir artigo de Miguel Reale Jr. Direito à felicidade, publicado no jornal Estado de São Paulo, em 5.2.2011.
[3] RAND, Ayn. Men´s Rights.Ayn Rand Center for Individual Rights.Disponível em: http://www.aynrand.org/site/PageServer?pagename=arc_ayn_rand_man_rights
[4] PEC 513/2010 , proposta pela deputada federal Manuela D´Ávila (PCdoB-RS), e PEC 19/2010, proposta pelo Senador Cristovam Buarque (PDT-DF).
[5] ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, Pleno, julgamento em 26.11.2012.
[6] HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da Dignidade, ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57.
[7]SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.430.
 
by Beatriz Bastide Horbach é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
 
 

domingo, 11 de agosto de 2013

Anulado acordo de cooperação técnica com a Serasa

A Ministra Presidente do Tribunal Superior Eleitoral avocou o processo administrativo no qual foi firmado o Acordo de Cooperação Técnica com a Empresa Serasa e declarou a sua nulidade. A Ministra submeterá a sua decisão ao Plenário do Tribunal em sessão administrativa.



Em sua decisão, a Presidente concluiu pela impossibilidade do seu objeto. Pela decisão da Ministra, a norma jurídica adotada como base do ajuste (al. c do § 3º do art. 29 da Res. N. 21.538/03)teria de considerar entidade autorizada apenas aquela de direito público ou de fins públicos, não se podendo incluir entidade privada sem finalidade coerente com os objetivos da Justiça Eleitoral.

Sem base legal para o Acordo, a Ministra valeu-se da súmula 346 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a Administração Pública pode anular seus atos quando eivados de vícios.

O Acordo não teve execução, porque dependia do desenvolvimento de um sistema para o acesso dos dados que poderiam vir a ser disponibilizados.

Veja a íntegra da decisão da Ministra, que será submetida ao Plenário do Tribunal.
 
Fonte: TSE

O STF inova e volta atrás

Além de inédita, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condenar à prisão um senador da República - Ivo Cassol, de Rondônia - reabriu a questão da competência da Alta Corte para determinar a cassação dos mandatos de parlamentares que tiver condenado. Cassol foi apenado a 4 anos, 8 meses e 26 dias em regime semiaberto por fraudar licitações quando prefeito de Rolim Moura, no seu Estado. A mesma pena foi aplicada a dois de seus então colaboradores. Eles deverão perder os cargos públicos que eventualmente exercerem. Mas Cassol só será privado de seu mandato se a maioria absoluta dos seus pares, em votação secreta, assim resolver. Para o presidente do tribunal, Joaquim Barbosa, a diferença de tratamento inverte a regra segundo a qual "quanto mais elevada a responsabilidade, maior deve ser a punição".
Configurou-se, de qualquer forma, uma reviravolta. No ano passado, por 5 votos a 4, o STF entendeu que a Câmara deveria cassar compulsoriamente os mandatos dos deputados João Paulo Cunha, José Genoino, ambos do PT, Pedro Henry, do PP, e Valdemar Costa Neto, do PR, condenados no processo do mensalão. Desta vez, por 6 votos a 4, o Supremo deixou para o Senado a decisão final. A mudança resulta da nova composição do tribunal, com o ingresso de dois novos ministros, Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso. Eles transformaram em maioria a minoria de então, juntando os seus votos aos dos colegas Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Do outro lado, mantiveram as suas posições Joaquim Barbosa, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello. Por impedimento técnico, o ministro Luiz Fux, que pensava como eles, não pôde participar do julgamento de Cassol.
Barroso disse "lamentar" que a prerrogativa do Legislativo de cassar mandatos esteja na Constituição. "Mas está aqui", argumentou. "A Constituição não é o que eu quero, é o que eu posso fazer dela." Zavascki, por seu turno, afirmou que eventual incongruência da Constituição - como a que parece existir no artigo 55, que trata da matéria - "não é problema nosso". Para Barbosa, no entanto, "estamos aqui para interpretar a Constituição". Na mesma linha, Mendes disse que "o sujeito condenado exercendo mandato parlamentar é fórmula jabuticaba: só existe no Brasil". Não está claro, de todo modo, se a nova decisão prevalecerá sobre a anterior no caso dos deputados do mensalão. É o que se começará a saber a partir desta semana, quando o STF retomará o julgamento dos primeiros embargos à condenação dos réus.
Se os recursos forem admitidos - contra a posição, já manifestada, de Joaquim Barbosa -, poderão cair as condenações por formação de quadrilha de diversos réus da ação penal, entre eles o ex-ministro José Dirceu, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, o publicitário Marcos Valério e o deputado Genoino, tomadas por 5 votos a 4. (O regimento do STF prevê a acolhida de embargos infringentes a sentenças em que pelo menos quatro ministros votaram a favor dos acusados, embora a lei tenha extinguido o recurso.) Isso porque, no julgamento de Cassol, Zavascki e Barroso o inocentaram do crime de quadrilha. Como o Estado destacou sexta-feira, Barroso acompanhou o voto do colega Dias Toffoli, o qual, para absolver o senador, repetiu os argumentos que usara no processo do mensalão. Segundo ele, acompanhando a posição da ministra Rosa Weber, "ocasional concerto de vontades para a prática de crimes" não configura quadrilha.
Daí não se infere que os novos ministros necessariamente replicarão os seus votos em relação a esse item, na hipótese de a maioria da Corte divergir do seu presidente quanto à admissibilidade dos embargos. É de lembrar ainda que os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, que haviam condenado nove réus do mensalão por formação de quadrilha, só absolveram o senador porque não chegaram a quatro os acusados das fraudes de Rondônia. Não deixa de ser significativo, de qualquer maneira, que o ineditismo do ato do STF, ao mandar para a cadeia um senador, tenha dividido a cena com a questão das cassações e o presumível efeito da sentença para o desfecho do mensalão - do qual, no dizer de Mendes, dias atrás, o tribunal continua "refém".

Barroso propõe racionalidade aos julgamentos no STF

Em sua primeira sessão plenária no Supremo Tribunal Federal, o ministro Roberto Barroso propôs uma mudança para dar racionalidade e poupar tempo nos julgamentos da corte. O ministro se dispôs a encaminhar as conclusões de seus votos nos processos em que é relator aos colegas, para que todos tenham conhecimento antecipado de como irá decidir a matéria discutida.
Na prática, o sistema faria com que os ministros que concordam com a tese do relator não tivessem de investir tempo para elaborar seus votos sobre o tema. A proposta ajuda inclusive aqueles que pretendem divergir, já que podem contrapor as razões do relator com mais propriedade. A proposta foi feita ao fim do voto de Barroso em Mandado de Segurança (MS 28.160) que contestava decreto presidencial que desapropriou, para fins de reforma agrária, um imóvel rural na cidade de Chorozinho, no Ceará. Os ministros mantiveram a desapropriação.
Barroso acompanhou o voto da relatora, Rosa Weber, e então sugeriu o encaminhamento das conclusões de votos antes do julgamento. Isso porque ele poderia dedicar tempo a analisar outros processos, em vez que estudar e elaborar um longo voto sobre um caso em que concorda com todos os argumentos do relator.
Os ministros não chegaram a discutir a proposta de Barroso no julgamento. O decano do tribunal, ministro Celso de Mello, disse à revista Consultor Jurídico que considera a proposta viável. Segundo ele, o sistema não interfere na independência dos ministros e facilita o trabalho porque evitaria longas considerações sobre os julgamentos. “A sugestão poderia trazer mais racionalidade aos julgamentos”, afirmou.
Já o ministro Marco Aurélio não se mostrou favorável à ideia. Questionado, apenas respondeu: “Há 34 anos eu não troco figurinhas”. O ministro Dias Toffoli lembrou que costuma distribuir seus votos como relator na hora da sessão e voltou a defender que as questões mais simples sejam julgadas por meio de um plenário virtual. O ministro colocaria seu voto no sistema e haveria um prazo para que os demais votassem. E isso tudo franqueando pleno acesso aos advogados. Assim, as sessões do Plenário físico ficariam livres para julgar os temas mais complexos e de maior alcance.
A prática proposta por Roberto Barroso é nova no âmbito do Supremo, mas não é novidade para ministros e juízes de outros tribunais. No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, o sistema já funciona com sucesso há anos na maior parte das turmas e seções do tribunal. Na 2ª Turma do STJ, os ministros trocam os votos dos processos pautados entre si dois dias antes da sessão de julgamento. Se o ministro pauta mais de 50 processos, a regra é encaminhar os votos com ao menos quatro dias de antecedência.
O encaminhamento já provoca uma discussão eletrônica entre os juízes. É comum os ministros apontarem precedentes em sentido contrário ao voto encaminhado e o voto ser reajustado. Isso evita debates desnecessários e faz com que a produtividade suba. Com a troca dos votos, os advogados e seus clientes também têm garantia de que, mesmo nos julgamentos em lista, todos os ministros tomaram conhecimento da questão.
Na 4ª Turma do STJ o sistema funciona de forma muito semelhante ao da 2ª Turma. Claro, essa é a regra. Há as exceções de casos mais complexos ou outros nos quais os ministros querem resguardar suas posições até o momento do julgamento. Nestes casos, os votos ou suas conclusões não são adiantados. Na maioria dos colegiados do STJ há algum tipo de procedimento do gênero para dar celeridade à análise dos julgamentos.
Barroso expunha ideias para racionalizar os trabalhos no STF antes de tomar posse do cargo. Em entrevista à ConJur, concedida no dia em que foi nomeado, o ministro afirmou que “o tribunal constitucional que julga 80 mil processos não tem condições de desempenhar adequadamente seu papel de tribunal constitucional”. E em artigo publicado no final do ano passado, Barroso defendeu a ideia colocada aos seus colegas nesta quarta-feira (1º/8).
À época advogado, Barroso escreveu: “O voto do relator deve circular pelos ministros antes da sessão de julgamento, para que tenham conhecimento do seu teor. Ou, pelo menos, a tese central desenvolvida e a conclusão devem ser informadas. Isso permitirá que aqueles que estejam de acordo possam simplesmente aderir, sem o trabalho desnecessário de preparar outro voto para dizer a mesma coisa — e sem consumir tempo precioso nas sessões plenárias. Os que divergirem já poderão chegar à sessão com sua posição alinhavada em um voto. Assim, minimiza-se a necessidade de pedidos de vista, abreviando-se o tempo de duração dos processos”.
 
 

Luís Roberto Barroso toma posse como ministro do STF

O advogado Luís Roberto Barroso tomou posse do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira (26/6). Nomeado pela presidente da República, Dilma Rousseff, ele assumiu a vaga do ministro Ayres Britto, que se aposentou em novembro do ano passado ao completar 70 anos de idade.
O novo ministro já tem inclusive montada sua equipe de gabinete. A chefe será a advogada Renata Saraiva, que já trabalhou com Barroso. Eduardo Mendonça, braço direito do então advogado em Brasília, também fará parte do staff. Dois outros juízes auxiliares no gabinete já foram advogados em seu escritório: Frederico Montedonio e Marcelo Leonardo Turim.
Participaram da solenidade os presidentes do Senado, Renan Calheiros; da Câmara, Henrique Alves; o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo; o senador José Sarney; ministros aposentados do STF, presidentes de tribunais e outras autoridades, além de familiares e amigos do novo ministro.
Nascido na cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro, Barroso tem 55 anos e chega ao STF depois de figurar em listas de nomes cotados para o posto por dez anos. A posse foi prestigiada e muito comemorada no meio jurídico. O novo ministro tomou posse em meio à onda de manifestações por reformas que toma as ruas do país. Nesta terça, Barroso disse que ficava feliz de chegar a um cargo no poder público com a juventude e o povo na rua: “Essa é a energia que move a história. Energia do bem e da paz. A violência e a depredação não constroem nada de bom” — clique aqui para ler.
Barroso já era figura conhecida na tribuna do Supremo. Nos últimos anos, como advogado, atuou na maioria dos casos paradigmáticos julgados pela Corte. Foi a partir de uma ação por ele elaborada, por exemplo, que a corte veio a editar a Súmula Vinculante 13, que veda o nepotismo nas três esferas de poderes da República. A lista dos processos em que se sagrou vitorioso é longa. O reconhecimento do direito da gestante interromper a gravidez de fetos anencéfalos, a legitimidade de pesquisas com células-tronco embrionárias, o reconhecimento da união homoafetiva e a rejeição da extradição do ex-militante da esquerda italiana Cesare Battisti são alguns dos relevantes casos em que o advogado fez a diferença.
Para o ministro, o Judiciário não deve ser pautado pela maioria, já que uma de suas atribuições é exatamente a de ser contramajoritário para garantir direitos fundamentais das minorias. Mas não é de todo ruim que as decisões tenham legitimidade social: “A permeabilidade do Judiciário à sociedade não é em si negativa. Pelo contrário. Não é ruim que os juízes, antes de decidirem, olhem pela janela de seus gabinetes e levem em conta a realidade e o sentimento social” — clique aqui para ler.
Em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico, concedida no dia de sua nomeação, o ministro afirmou que não existe “um surto de ativismo judicial” em curso no país. O tema deu o tom de sua sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Segundo ele, a quantidade de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo é ínfima e, mesmo em casos emblemáticos, o tribunal tem como característica a deferência ao Congresso Nacional. “Por exemplo, no julgamento sobre a possibilidade de se fazer pesquisas com células-tronco embrionárias, o Supremo manteve a lei que foi editada pelo Congresso. Não há um padrão rotineiro de ingerência indevida”.
 
 

Cultura do lítigio: empresas transferiram seu call center para o Judiciário

Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça recebeu 275 mil novos recursos judiciais e julgou 362 mil processos, entre decisões individuais de seus ministros e coletivas, proferidas pelas turmas e seções do tribunal. Feitas as contas, descontados os dois meses de recesso judicial e os três ministros que não participam destes julgamentos (presidente, vice e corregedor), cada um dos 30 ministros do STJ proferiu 1.200 decisões por mês. Um volume que não encontra precedente em corte superior de nenhum outro país.
É com os olhos nestes dados que o ministro Luis Felipe Salomão, presidente da 4ª Turma do STJ, afirma que o papel da Corte foi desvirtuado por “um sistema recursal anárquico” que transformou o tribunal em terceira instância e o impede de cumprir a contento sua missão de uniformizar a interpretação da legislação federal no país. E, principalmente, julgar as questões que são realmente importantes para a cidadania. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida para a composição do Anuário da Justiça Brasil 2013, que será lançado em março, o ministro aponta saídas para o engarrafamento judicial.
Para o STJ, a tábua de salvação é a aprovação pelo Congresso Nacional da proposta que institui a chamada relevância da questão federal — mecanismo semelhante à repercussão geral já em uso pelo Supremo Tribunal Federal. Para o Judiciário de forma geral, a solução é a criação de um caldo de cultura de conciliação e mediação e a percepção de que a lentidão judicial provocada pelo volume não é um assunto apenas da Justiça. “Trata-se de um problema de política pública, que demanda o envolvimento dos três poderes da República e da sociedade em geral”, afirma Salomão.
O ministro aposta que o trabalho em cima de métodos alternativos de resolução de conflitos, que evite que todo e qualquer litígio chegue à Justiça, é um caminho para diminuir o fluxo processual: “Sobretudo as chamadas demandas de massa poderiam ser resolvidas com um sistema de mediação mais adequado”. Na Presidência da Comissão de Reforma da Lei de Arbitragem do Senado, Salomão acredita que poderá começar a estudar as possibilidades de evitar que os conflitos deságuem todos no Judiciário. “Não temos a tradição de trabalhar soluções alternativas. Nas universidades não há cadeiras que tratem de mediação ou conciliação. Só cadeiras que ensinam a redigir petição inicial, contestação, recurso”, lembra o ministro.
Para Salomão, é preciso acabar com o “jogo de empurra” que interessa apenas a quem ainda usa a lentidão judicial como forma de ganhar dinheiro: “Todos estão acomodados. As empresas estão acomodadas. Os grandes litigantes do Judiciário estão acomodados porque transferiram o seu call center para a Justiça”. O ministro também enfatiza a necessidade de se aprimorar as técnicas de gestão eficiente do serviço judicial.
Leia os principais trechos da entrevista
ConJur — É possível construir uma jurisprudência que leve em conta a doutrina, as leis e as aspirações populares?Luis Felipe Salomão — Há alguns anos, a professora Maria Tereza Sadek fez uma pesquisa encomendada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). Uma das perguntas era o que os juízes levavam em conta na hora de decidir: o impacto social, o impacto econômico, o impacto popular. A pesquisa detectou que os juízes calibram bem todos os aspectos em suas decisões. O juiz não é um ser extraterrestre que não leva em consideração nenhum desses fatores para decidir. Leva sim, claro! Quando o juiz vai decidir, ele pondera valores, trás toda a bagagem cultural de sua vida e procura ver a solução mais justa para o caso concreto, mas também com o olho na consequência de suas decisões. A maioria age dessa forma. A doutrina tem um papel importantíssimo. A opinião da academia é valiosa. Nem sempre é correta para os casos em julgamento, mas é considerada. O juiz tem, sim, de observar os impactos sociais e econômicos de suas decisões. Mas o peso que será dado a esses fatores depende do assunto, das circunstâncias e da história de vida do juiz que vai prolatar a decisão.
ConJur — O maior gargalo da Justiça ainda é a lentidão no julgamento dos processos. Recentemente a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou a Grécia a indenizar um cidadão vítima da lentidão judicial. O senhor acha que isso pode ocorrer no Brasil?Salomão — Se não houver prova de desídia e de má-fé do juiz ou de servidor, penso que não há direito a indenização. Mas a condenação do tribunal europeu não se deu só com a Grécia. A Itália é um país que tem uma série de condenações por lentidão judicial e até hoje tem uma legislação processual intrincada. Eu gostaria de ver a renovação de uma pesquisa feita pelo professor Mauro Cappelletti (doutor em Direito pela Universidade de Florença e professor da Universidade de Standford) em parceria com o professor Bryant Garth (doutor em Direito pela Universidade de Standford) que resultou no livro Acesso à Justiça. Eles compararam o tempo de duração dos processos em países variados, o custo e as soluções para resolver os problemas. A pesquisa foi feita há mais de 20 anos, com o apoio da Fundação Ford. Não conheço trabalho semelhante no mundo. O Banco Mundial financia algumas pesquisas...
ConJur — Mas o foco é outro, mais econômico, não? É o foco da segurança jurídica para investimentos.Salomão — São os negócios internacionais. Segurança jurídica para o ambiente de negócio. Seja como for, o fato é que precisamos cuidar da questão do tempo, da duração da demanda, que é um problema que aflige a maioria dos países civilizados. O Judiciário tem, sim, sua parcela de responsabilidade pela lentidão. Mas esse é um problema de política pública. Não é um problema isolado. É necessário trabalhar as soluções alternativas à jurisdição ou métodos alternativos de resolução de conflitos, sem que tudo acabe chegando à Justiça. Sem trabalhar fórmulas alternativas, não diminuiremos o fluxo de entrada, que hoje é muito volumoso. Sobretudo as chamadas demandas de massa poderiam ser resolvidas com um sistema de mediação mais adequado. Mas fica um jogo de empurra. Há também, por outro lado, a necessidade relativa ao treinamento mais adequado dos juízes e servidores para o tema da gestão judicial.
ConJur — Tem-se a impressão que há uma acomodação, uma resignação com o fato de que a Justiça é lenta, quase como se essa fosse uma característica intrínseca.Salomão — Todos estão acomodados. As empresas estão acomodadas. Os grandes litigantes do Judiciário estão acomodados porque transferiram o seu call center para a Justiça.
ConJur — Por quê?Salomão — Talvez porque isso implique redução de custos. Deve ser mais barato deixar acionar o Judiciário do que manter um call center que efetivamente resolva os problemas. Virou uma indústria em que muitos ganham dinheiro. Em todas as demandas se acrescem pedidos de indenização por danos morais e os recursos se multiplicam. Nós não temos a tradição de trabalhar soluções alternativas. Nas universidades não há cadeiras que tratem de mediação ou conciliação. Só cadeiras que ensinam a redigir petição inicial, contestação, recurso. O advogado aprende apenas a litigar, quando o foco, hoje, deveria ser compor conflitos.
ConJur — O que é preciso fazer para solucionar isso?Salomão — Dar um cavalo de pau. O CNJ vem atuando voluntariosamente com a Semana da Conciliação, por exemplo. É um esforço louvável. Mas é necessário o envolvimento dos três poderes da República e da sociedade organizada para resolver o problema. E, sobretudo, criar um caldo de cultura de mediação de conflitos. É questão de política pública do Estado Brasileiro, não só do Judiciário.
ConJur — Mas o senhor identifica algum fator chave que dá combustível à lentidão judicial?Salomão — São inúmeros fatores. Outro fator importante, além daqueles já mencionados, é o sistema processual. Temos um sistema de recursos anárquico, que permite transformar o STJ e o STF em terceira e quarta instâncias, desvirtuando o papel dessas cortes. Eu acredito também que dentro de pouco tempo deverá ser feita uma discussão séria a respeito da transformação da Suprema Corte do país em Corte Constitucional. Nós temos o sistema europeu de julgamento de recursos com o modelo americano de Corte Suprema. É hibrido. E isso leva a distorções. O desvirtuamento do papel do STJ e do Supremo está chegando a um ponto em que será preciso pensar em novos perfis adequados para estes dois tribunais.
ConJur — Esse desvirtuamento justifica o que se chama de jurisprudência defensiva? Explica o maior rigor na admissibilidade de recursos?Salomão — Infelizmente, sim. Sobretudo nos tribunais superiores, mas o desvirtuamento é tamanho que ela está se espalhando para os tribunais locais também. O volume está crescendo vertiginosamente, especialmente no caso das chamadas demandas de massa. Então, a jurisprudência defensiva é uma deformação do sistema anárquico de recursos. A solução para isso é que o STJ adote, à semelhança da repercussão geral para o Supremo, a relevância da questão federal. Tecnicamente não há outra saída.
ConJur — O respeito à súmulas não seria um bom começo? As súmulas do STJ têm sido seguidas pelas instâncias inferiores?Salomão — As súmulas são instrumentos poderosíssimos de segurança jurídica e têm o respeito da comunidade jurídica e dos tribunais. Mas venho notando que há uma gama tão grande de assuntos novos no campo do Direito Privado e uma multiplicidade e variação do mesmo tema que hoje as súmulas já não têm mais a precisão que tinham no passado. A sociedade mudou, os negócios jurídicos mudaram e os temas têm variados perfis. Logo, as súmulas também sofrem do problema da interpretação. Tornou-se muito difícil a redação de uma súmula prever tantas variações que decorrem de determinado tema. Como disse, a súmula é um instrumento poderoso, mas que também precisa ser adequado aos tempos atuais.
ConJur — Como?Salomão — Com subvariações de uma mesma súmula, com a diversificação do catálogo de súmulas. Na Comissão de Jurisprudência do STJ, que eu integro, sugeri que as súmulas que decorrem de julgamentos de recursos repetitivos sejam destacadas das demais súmulas. O ideal seria criar numeração nova para estas súmulas, mas teríamos de renumerar todas as outras. O ideal, então, é que se dê destaque.
ConJur — Arbitragem, mediação e conciliação são formas efetivas para desafogar a Justiça? Qual será o foco da Comissão de Reforma da Lei de Arbitragem e Mediação do Senado, que o senhor presidirá?Salomão — O Senado me honrou com o convite para coordenar os trabalhos dessa comissão, que eu reputo importantíssima. Não porque a Lei da Arbitragem tenha algum problema. Ao contrário, necessita apenas de pequenas adequações e atualizações. A história da lei é uma história de sucesso. Há, porém, espaço para trabalhar a questão da mediação, que não está regulada, e outras modalidades de soluções alternativas de conflitos que não estão previstas na lei. É nesse campo que eu acredito que a comissão possa ter um forte trabalho. A comissão será instalada em breve e o que me animou a integrá-la foi justamente o olhar pelo ângulo do acesso à Justiça. Das soluções que podem ser criadas para que esse acesso seja efetivo, por meio do Judiciário ou não.
ConJur — O senhor falou há pouco sobre os pedidos de indenização por danos morais que acompanham grande parte das demandas no Direito Privado. Um dos problemas das indenizações, que persiste ao longo do tempo, são valores díspares para situações semelhantes. O Judiciário pode fixar teto de valores para indenização por danos morais?Salomão — Esse é um tema recorrente porque a lei deixou ao arbítrio do julgador a fixação do valor por dano moral. E é um tema relativamente novo, que veio com a Constituição de 1988. Antes não havia a possibilidade de condenação em dano material e dano moral. Então, o debate é recente. O modelo de defesa do consumidor também se modificou e amplificou muito. E um dos instrumentos desse modelo é a ação de indenização por dano moral para a satisfação do consumidor lesado. Fala-se muito hoje em indústria do dano moral. O Judiciário ainda é um observador desse fenômeno, e só mais recentemente é que o STJ vem definindo alguns parâmetros e regras, como, por exemplo, se a indenização por dano moral é para o núcleo familiar global ou para cada um dos familiares per si, em caso de vítima que vem a morrer. Outro exemplo é o teto máximo de 500 salários em caso de morte. Há ainda diversos outros pontos a serem tratados pela jurisprudência.
ConJur — Para fixar o valor da indenização por dano moral o juiz deve dar mais peso à condição financeira e social da vítima ou à condição do causador do dano?Salomão — Deve levar em conta as duas coisas, mais as circunstâncias do fato e todo o conjunto de provas que cerca aquele caso particular. Por isso, e só por isso, é que o legislador deixou ao arbítrio do juiz a fixação do valor. O ideal é ter parâmetros, mas isso também não pode ser tarifado pelo Judiciário. Não se podem impor limites que engessem o julgador.
ConJur — Não dá para criar uma tabela.Salomão —Exatamente. Mas o valor é, de certa forma, balizado para que o dano moral não surta o efeito contrário, de falir ou quebrar uma empresa, por exemplo. Porque aí você atinge uma coletividade, que são os empregados e credores daquela empresa, para satisfazer um só cidadão. É necessário buscar o ponto de equilíbrio, e evitar a denominada “jurisprudência lotérica”, ou seja, para um fato semelhante, indenizações díspares.
ConJur — Por falar em credores, a penhora online em dinheiro deve ser medida preferencial nas execuções?Salomão — Sem nenhuma dúvida. A penhora online trouxe um avanço enorme. Há alguns senões aqui e ali, mas são exceções que confirmam a regra de que ela acabou com aquela ideia de “ganha, mas não leva”. A penhora online reduziu substancialmente o que era um dos gargalos das execuções judiciais. O sujeito passava anos para obter um título judicial executivo e, depois que obtinha, já não conseguia fazê-lo valer porque o devedor já não tinha bens.
ConJur — Mas muitos advogados reclamam que as exceções não são tão excepcionais assim. Há histórias de juízes que mandam bloquear a conta de empresas por conta de valores muito inferiores aos que estão na conta.Salomão — Eu já peguei um ou outro excesso. Mas os excessos são combatidos pelos recursos. O que não pode é cercar demais, criar muita burocracia, porque há o risco de desvirtuar o instituto e favorecer o devedor. Aí será um tiro pela culatra.
ConJur — Como o senhor vê o ano de 2012 para o STJ?Salomão — Um ano bom apesar do volume imenso de trabalho. Nós tivemos questões relevantíssimas discutidas. Mas o que precisa ser urgentemente pensado é a questão da relevância, um filtro que seja efetivo para que o tribunal possa trabalhar melhor e julgar com mais acuidade as causas mais relevantes. Há alguns outros pontos que nós temos que efetivamente melhorar. Por exemplo, dar um tratamento mais adequado aos recursos repetitivos, estruturar melhor o setor de distribuição e classificação dos processos. Mas estas são medidas administrativas que vão ser adotadas com maior ou menor brevidade. O foco principal para que o STJ continue vocacionado a atender a cidadania é a relevância da questão federal (clique aqui para ler a Retrospectiva 2012 sobre o STJ escrita pelo ministro).
 
 

domingo, 7 de julho de 2013

José Afonso da Silva é o doutrinador mais citado pelo STF

O presente estudo empírico possui como objetivo a exposição dos resultados obtidos a partir da análise de julgados realizados no Supremo Tribunal Federal. Esta análise culminou na elaboração de uma relação dos doutrinadores brasileiros de Direito Constitucional[1] que são utilizados com maior frequência por parte dos Ministros do Supremo Tribunal Federal na confecção de seus votos no que trata, especificamente, do controle concentrado de constitucionalidade.[2]
O critério estipulado para a delimitação cronológica teve por base as datas dos dados disponibilizados pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Logo, partiu-se do ano de 1988 até 2012.[3] Em específico foram consultados os seguintes julgamentos para a compilação dos dados apresentados: i) 984 ADIs procedentes e procedentes em parte, entre 1988 e 2012; ii) zero ADOs procedentes e procedentes em parte, entre 2008 e 2012; iii) 10 ADCs procedentes e procedentes em parte, entre 1993 e 2012; iv) 9 ADPFs procedentes e procedentes em parte, entre 1993 e 2012. Total: 1003 casos relacionados ao controle concentrado de constitucionalidade analisados.
Entende-se que os resultados apresentados podem contribuir para, ao menos, duas frentes. Primeiro, o trabalho segue uma linha ainda pouco utilizada no campo jurídico brasileiro, que se refere à pesquisa empírica com o levantamento de dados sobre as instituições. Contudo, não se pretende, com isso, qualquer construção fechada ou autorreferenciada, nem mesmo afirmações precipitadas sobre qual é a “doutrina” seguida pela Suprema Corte.[4] Apresenta-se apenas como um levantamento de dados que procura auxiliar na produção de saberes sobre as instituições.
A segunda frente trata da possibilidade de uma autorreflexão tanto por parte do Poder Judiciário como dos doutrinadores, no sentido de conhecer quais são os autores utilizados para a construção dos argumentos de justificação das decisões judiciais no controle concentrado de constitucionalidade. Esse olhar especular, interno, pode vir a ser utilizado para o entendimento dos processos institucionais produzidos pela Corte.
Ademais, o presente trabalho acabou por legar uma impressão em negativo dos dados da pesquisa, pois acreditava-se que o número de citações de obras doutrinárias de constitucionalistas brasileiros seria muito mais expressivo.[5]
Adverte-se, ainda, que as escolhas relacionadas à identificação do objeto de pesquisa não obstam que outras pesquisas venham a ser realizadas adotando outros critérios. Explica-se.
Primeiro, optou-se por restringir a análise aos casos de controle concentrado de constitucionalidade, ou seja, aos casos em que o Supremo Tribunal Federal atua como guardião da Constituição Federal por excelência, em face da realidade de um número de matérias muito extenso que conseguem alcançar a jurisdição constitucional e que, não necessariamente, deveriam estar sendo julgadas pela Suprema Corte.
Segundo, outra decisão na produção deste trabalho foi limitar a análise apenas aos casos procedentes e procedentes em parte do controle de constitucionalidade. Não foram consideradas as decisões em que se julgou pelo não conhecimento das ações ou em que estas foram julgadas improcedentes.
Por isso, não se descarta a possibilidade da realização de outras pesquisas mais abrangentes ou com a adoção de outros critérios, uma vez que, perante as escolhas metodológicas tomadas, aquilo que pode ser observado é apenas um fragmento de uma complexa teia de informações que, sabe-se, é muito mais vasta e pode estar submetida a outras lentes no que tange a análise de seu corpo.
Desse modo, a lista dos doutrinadores mais citados[6] pelo STF no que diz respeito ao controle de constitucionalidade entre os anos de 1988 e 2012 são os seguintes:
 
leia na íntegra aqui.
 
 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Chegou a hora do Direito Constitucional Tributário

Do goleiro ao ponta-esquerda, do camisa 1 ao 11, o Supremo Tribunal Federal finalmente está com o “time” completo para “jogar” as próximas “partidas”, com um reforço de peso. Um tremendo “craque” entrará em campo. Confirmado pelo Senado Federal no último dia 5 de junho, o ministro Luís Roberto Barroso em breve estreará na Suprema Corte e já é grande a expectativa do público, que aguarda ansioso suas “apresentações” e deposita confiança que estas serão à altura do “camisa 10” que está a substituir.
O ministro Carlos Ayres Britto na “equipe” do Supremo foi o típico meia-atacante clássico que “matava” as bolas que chegavam muitas vezes “quadradas”, as “botava” no chão e desfilava toda sua categoria em direção ao gol, assumindo a responsabilidade da condução serena dos julgamentos mais polêmicos dos últimos anos — alguns deles como relator e o mais difícil de todos, o do “mensalão”, como Presidente.
Reencontrei Ayres Britto duas vezes recentemente. A primeira, pessoalmente, em almoço em torno de uma paixão comum: o Clube de Regatas Vasco da Gama. Outra, intelectualmente, quando, desarrumando as estantes do escritório para organizar minha mudança, deparei-me com uma pequena obra-prima: Revisão Constitucional: Norma de Eficácia Esvaída.
Esse é o título de monografia do professor e advogado Ayres Britto que me fora presenteada por um queridíssimo amigo de Aracaju, colega de universidade no Rio de Janeiro, que, após graduar-se em 1993, retornou para sua cidade natal para trabalhar na assessoria do Tribunal de Justiça sergipano. Na dedicatória de meu amigo, um elogio ao autor, “advogado atuante de quem fui aluno faz algum tempo. Grande sujeito”. No cartão em que me encaminhava os presentes (também recebi um livro do futuro Governador Marcelo Déda), meu amigo dizia “ainda não é dessa vez que nos presenteamos com nossas próprias obras, mas o tempo corre a nosso favor”.
Definitivamente o tempo correu a seu favor. Passados 20 anos, tenho orgulho em dizer que o colega de universidade que me presenteou é Procurador-Geral do Estado de Sergipe. Passados 20 anos agora posso compreender como são importantes equilíbrio, serenidade e, fundamentalmente, bom senso para que sejam dadas as soluções jurídicas mais adequadas para a construção de uma nação civilizada e democrática. A defesa intransigente da higidez da lei constitucional contra pretensões despropositadas de revisão, a feliz dicotomia comparativa entre os regimes jurídicos das emendas e da revisão do artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a interpretação do texto constitucional no seu contexto, já revelavam a persona de um jurista do mais alto gabarito que anos depois viria preencher os quadros do Supremo Tribunal Federal e nele escrever alguns capítulos fundamentais de nossa história jurídica recente.
Luís Roberto Barroso tem todos os atributos para também fazer história no Supremo Tribunal Federal. O mais novo ministro é acima de tudo um advogado admirado por seus pares, porque soube defender suas causas com elegância, técnica e profundo saber jurídico. Há muito não havia tamanha unanimidade entre os advogados, que nele se sentem legitimamente representados, um exemplo de luta intransigente pela tolerância das diferenças, pelo respeito à pessoa humana, pela garantia de uma existência digna.
Mas o que esperar de Barroso na área tributária? Esperamos um constitucionalista, e isso Barroso, sem sombra de dúvidas, é um dos melhores do Brasil. Não foi por outra razão a sua escolha ter sido recebida sem qualquer ressalva pela comunidade jurídica.
A solução às inúmeras questões tributárias que chegam ao Supremo deve ter cada vez mais privilegiar os princípios e garantias constitucionais que alicerçam e sedimentam as relações entre os particulares e o Estado. Criadores e criatura não se encontram em pé de igualdade como muitas vezes os fiscos tentam fazer parecer. Não há direitos do Estado contra os contribuintes, há apenas competências conferidas pela Constituição, que podem e devem ser exercidas dentro dos limites fixados pela própria Carta.
Para os entes públicos, todas as causas envolvendo matéria fiscal se traduzem em cifras de magnitude estratosférica. Muitos bilhões de reais serão perdidos se for decretada a inconstitucionalidade de determinado tributo, não sei quantos programas sociais serão paralisados se uma majoração de alíquota for repelida ou uma dedução de bases de cálculo autorizada. Nunca, jamais, se leva em conta o que poderiam fazer de melhor os particulares para suas empresas, suas vidas pessoais, caso deixassem de ser extorquidos por uma tributação iníqua. E assim seguem os Tribunais assombrados por argumentos ad terrorem.
É chegada a hora de dar mais valor às garantias e princípios constitucionais. Onde foi parar o princípio da legalidade? É admissível deixar passar tributos criados sem lei? Onde estão as garantias do direito de propriedade e da livre inciativa? Que exemplo está se dando para as próximas gerações? Como aceitar tantos descalabros com passividade e resignação?[1]
É chegada a hora de voar mais alto, de abandonar o suposto-saber de regras contábeis que vêm inundando os processos judiciais tributários e passar a discutir as questões à luz de princípios e garantias mais caros à Constituição, como a proporcionalidade e a segurança jurídica. É chegada a hora do Direito Constitucional Tributário.
Exemplo recente de desrespeito ao princípio da legalidade, de tributação desproporcional com base em instrução normativa e de recurso pelo Fisco a argumentos (incorretos) contábeis, que não nos cansamos de discutir nessa coluna, é o da legislação que tributa o investimento brasileiro no exterior (artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35/01 e Instrução Normativa 213/02, da Receita Federal).
Não se pode admitir como compatível com a Constituição uma lei que não diferencia o regime tributário do investimento brasileiro no exterior. Investimentos das empresas brasileiras em diversos países estão sendo taxados automaticamente, antes de sua eventual distribuição. Empresas são obrigadas a se descapitalizarem para pagar a conta de um imposto que jamais irão recuperar. As eventuais renúncias fiscais de nações menos favorecidas, concedidas com o fito de atrair investimentos, são engolidas pela voracidade arrecadatória brasileira. O que o Brasil faz atualmente seria o mesmo que deixar a Itália apropriar-se da renúncia fiscal do investimento no Nordeste feito pela Fiat, que deve beneficiar-se dos incentivos de redução de imposto da Sudene. Não pode estar certo. Em nenhum lugar do mundo é assim!
Escrevo na madrugada de Miami (já passam das três da manhã), onde estou para participar do Congresso anual de Direito Tributário organizado em conjunto pela International Bar Association (IBA), American Bar Association (ABA) e International Fiscal Association (IFA) que começa nesta quarta-feira, dia 12 de junho.
Minha mesa na sexta-feira de manhã debaterá tratados internacionais, mas tenho certeza que a audiência — composta por profissionais do Direito dos EUA, Canadá e países Latino Americanos — estará ávida por saber quais os rumos da tributação dos investimentos brasileiros no exterior, já que são profissionais que poderão vir a atender os investidores brasileiros em suas respectivas jurisdições. O que dizer? Vocês têm alguma sugestão? Eu ainda não sei.
Reestudando o caso há poucos dias, tive acesso aos votos do ministro Dias Toffoli nos recursos extraordinários 611.586-PR (Coamo) e 541.090-SC (Embraco) e assustei-me com a ressalva inicial neles contida segundo a qual “(...) registro minha posição no sentido de não se aplicar à espécie o quanto decidido no RE nº 172.058/SC- Rel. Min. Marco Aurélio. A hipótese de aquisição de disponibilidade criada pela medida provisória, ao que me parece, cuida da relação peculiar que se estabelece entre o patrimônio das controladoras/coligadas no Brasil e o das controladas/coligadas no exterior (pessoas jurídicas), o que distingue este caso do precedente invocado, no qual se discutiu a constitucionalidade do imposto sobre a renda oriunda dos dividendos distribuídos aos acionistas, quotistas ou sócios individuais (pessoas físicas)”.
Ora, é notório que a inconstitucionalidade do imposto sobre o lucro líquido (ILL) decretada no RE 172.058-SC nada tem a ver com a qualidade do sócio — pessoa física ou pessoa jurídica — e, sim, com a questão de se tributar renda indisponível: (i) absolutamente, no caso de sociedades anônimas e (ii) eventualmente, no caso de sociedades por quotas, em que a distribuição, via de regra, seria automática).
A premissa de que partiu o voto do ministro Dias Toffoli é falsa e, por isso, é merecedora de reapreciação. Mas será isso viável? É de se suscitar esse equívoco na palestra?
E o voto do ministro Joaquim Barbosa, como virá? Ansiosos, aguardamos a revelação da solução dada para considerar constitucional o regime apenas para investimentos em “paraísos fiscais”, muito embora considere o regime legal incompatível com o fato gerador do imposto de renda consagrado no artigo 43 do Código Tributário Nacional. Por ora, como explicá-la ao público? Esse é o nosso desafio imediato. É um pequeno desafio.
Luís Roberto Barroso se junta aos demais ministros e ministras do Supremo para um desafio monumental: zelar pela incolumidade dos princípios e garantias que a Constituição assegura.
Ayres Britto, com a verve poética que lhe é peculiar, terminava sua monografia de 1993 dizendo que mesmo o poder constitucional reformador é derivado e, por isso, limitado ao contexto em que se insere. Qualquer interpretação em sentido contrário e “o Código Supremo seria castelo de areia à beira da praia, exposto às estrepolias do vento e à gulodice do mar”.
A Constituição não pode ser castelo de areia exposta ao vento e ao mar, tem que ser fortaleza de pedra inexpugnável. Essa fortaleza se constrói com posições firmes, com a defesa intransigente das garantias da legalidade da tributação, do no taxation without representation, da razoabilidade, da proporcionalidade e da segurança jurídica. O time está completo, que comecem as partidas e que prevaleça um verdadeiro Direito Constitucional Tributário.

[1] Cfr. Hoje em dia tudo se resolve com instrução normativa
Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
 
 

Resenha: Levando o Direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial.

Resenha da obra: MOTTA, Francisco José Borges. Levando o Direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Coleção Lenio Luiz Streck. Florianópolis : Conceito, 2010. 232 p.
Por Adalberto Narciso Hommerding[1]
 
A obra que tenho o prazer de resenhar é o resultado da dissertação de Mestrado do talentoso Francisco José Borges Motta, Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul e Doutorando em Direito na UNISINOS. Francisco, tributário da Nova Crítica do Direito (ou Crítica Hermenêutica do Direito), cunhada originalmente por Lenio Luiz Streck, parte de uma das idéias centrais acerca do Estado Democrático de Direito, que é a do deslocamento do centro de decisões dos demais poderes para o Poder Judiciário (Justiça Constitucional), lembrando que o Direito passa a ser instrumento de transformação social, fazendo com que as inércias do Executivo e do Legislativo sejam supridas pelo Judiciário no que diz respeito à implementação dos direitos fundamentais.
O autor, nesse primeiro momento, pretende (e o faz de forma original), a partir daí, delimitar o sentido da Constituição a fim de compreender os problemas do processo jurisdicional brasileiro, aportando sua argumentação, principalmente, na Crítica Hermenêutica de Streck e na Teoria do Direito como Integridade, de Ronald Dworkin, que nega a prática do decisionismo, pregando a necessidade de “respostas corretas” no Direito, na defesa da sua autonomia e do seu necessário relacionamento com a moral que lhe é co-originária, mas da qual não depende. Assim é que Francisco dirá que os tribunais devem estar preparados para formulação de “questões de moralidade política” que exigem resposta, inclusive contra as “maiorias eventuais” e “vontades sociais de ocasião”. Aqui, Francisco deixa claro seu comprometimento com uma postura (constitucional) que envolve “sacrifícios”, diante da necessidade de se renunciar a “benefícios marginais”, a fim de que as instituições possam garantir a “igual consideração e respeito” pelos cidadãos de um país.
O texto defende, portanto, a necessidade de uma “instituição” de direitos e de “instituições”, dentre elas o Judiciário, que “levem os direitos e a Constituição a sério”. Nesse aspecto, estabelece o autor o “ponto de contato” entre o neoconstitucionalismo e a teoria dos direitos de Dworkin, que vê o Direito não apenas como um sistema de regras, à moda do positivismo que sequestrou o “mundo prático”, mas como um sistema de regras e de princípios, possibilitando estes o resgate desse mundo prático que foi aniquilado pelas diversas teorias positivistas, notadamente as de Herbert Hart e Hans Kelsen. E essa “carga” (de resgate) ficará depositada sobre os ombros da Justiça Constitucional, que deverá estar preparada para “operacionalizar” uma “leitura moral” da Constituição.
Daí a importância de se “articular” a leitura da Constituição, como pontua o autor, impedindo, nas palavras de Francisco, “os juízes de afirmarem que a Constituição expresse suas próprias convicções”, mas lembrando que “somos governados pelo que nossos legisladores disseram” (Dworkin), pois, mais que um documento, a Constituição é uma “tradição” (Gadamer), havendo necessidade de uma “mediação”, pela compreensão, entre a história e a atualidade.
É nesse ponto que ingressa a (não menos importante) idéia de que o trabalho do juiz é um “trabalho em equipe”, “construído em conjunto”, pois não pode ser um “solipsista”, não havendo um “grau zero” de interpretação, devendo, portanto, ter uma visão do Direito como um “todo coerente e íntegro”, no que a doutrina e os precedentes, desde que “adequadamente compreendidos”, o socorrerá. A leitura moral da Constituição, nesse aspecto, é o primeiro passo para que se possam livrar os juízes do “protagonismo” que o positivismo com sua discricionariedade lhes legou.
A partir de Arthur Kaufmann, Francisco Motta rejeitará o “puro filósofo” e o “puro jurista” para, encampando a postura hermenêutica de Lenio Streck, defender a superação da filosofia “do” direito por uma filosofia “no” direito, pois este só pode ser pensado em linguagem filosófica, não podendo a filosofia, por seu turno, ser entendida (ou transformada) num “discurso ornamental” que seja tão-somente “adjudicado” pelo Direito. É que a filosofia, sobretudo, é “condição de possibilidade” de qualquer pesquisa em Direito, como bem refere Lenio. E isso é inevitável.
Aqui, faz-se presente o ponto de ultrapassem da filosofia da consciência. Ultrapassagem feita a partir de Martin Heidegger (filosofia hermenêutica) e Hans-Georg Gadamer (hermenêutica filosófica), que desmistificam a relação sujeito-objeto, própria da metafísica, dando um “basta” à idéia de verdade como “produto” do método e (re)colocando a hermenêutica na sua “condição mundana”, que agora passa a dizer respeito às condições prévias não só da interpretação, mas de todo o pensamento e atividade humana. É que, a partir de Heidegger e Gadamer, há uma necessidade de “explicitar o ser”, que Platão e todos os demais filósofos posteriores “esconderam” ao entificá-lo, deixando de praticar uma “ontologia fundamental” pela desconsideração da diferença ontológica e do aspecto da quotidianeidade do “Dasein”, o ser-aí, que é fático, mundano, cuja analítica desemboca na “hermenêutica da faticidade”.
A partir de Heidegger, o compreender passa a ser um existencial que conduz a possibilidades. Afinal de contas – e aí Francisco, que sabe muito bem disso tudo, retornará a Lenio -, “compreendemos para poder interpretar”, e não o reverso. Eis aí a importância do “método fenomenológico”, que não é “método”, deixando que a “coisa seja”, a partir da experiência, de que o Direito não pode prescindir. Nesse ponto, “Chico” pregará com Streck uma verdadeira “cruzada” pela “ontologização” do Direito, que não pode mais prescindir do mundo prático e que não pode ficar “blindado” à linguagem, que de há muito invadiu a filosofia (e o Direito), “derretendo” o esquema sujeito-objeto. Por isso é que o Direito deve ser pensado em seu acontecer, uma vez que deve ser o “lugar da concretização justa de direitos”. Essa colocação permitirá fugir dos esquemas da “intenção do legislador”, tão bem criticados por Carlos Santiago Nino.
A obra, a partir daí, passa a tratar da necessidade de uma fundamentação para compreender hermeneuticamente o Direito Processual Civil, sempre a partir da idéia de que é necessário “combater” o protagonismo judicial – entendido aqui como puro ativismo -, aceitando-se a Constituição em sua materialidade e os princípios do Devido Processo Legal, contraditório e ampla defesa como princípios de “moralidade política” que devem ser tomados como um “todo coerente”, cuja importância só se existencializa no caso particular. Processo, assim, é direito e garantia fundamental, condição de possibilidade de acesso a uma ordem jurídica justa, constitucional e principiologicamente íntegra. Por meio dele é que o cidadão, nas palavras de Francisco, “não só 'pede jurisdição' (sic), mas verdadeiramente dela participa, concorrendo efetivamente para a adequada concretização dos seus próprios direitos (tomados em conjunto (...) com a integridade do ordenamento jurídico), o que não ocorre sem que um diálogo seja permitido (e estimulado) pela agência judiciária, que, de sua vez, só se justificará democraticamente na medida em que se deixe influenciar pelos argumentos (de princípio!) universalizáveis e relevantes das partes, relacionados com a causa em disputa”. E aí o autor lembrará: “essa fórmula judiciária, que se pretende democrática (e democratizante), não pode ficar confiada à subjetividade assujeitadora (...) de um juiz 'protagonista'”.
Os passos que Francisco entende importantes para que se possa falar em um processo de autêntica jurisdição constitucional são os seguintes: a) reconhecer que o Direito Processual Civil não desempenha o papel que deveria desempenhar em nosso país, pois, primeiro, o modelo de Direito praticado é preparado para conflitos interindividuais, típicos de uma jurisdição liberal, e, segundo, porque vivemos dependentes de um parâmetro filosófico-interpretativo preso à filosofia da consciência, concebendo o Direito como uma “ciência exata”, “técnica” ou “método”, desconsiderando que o Direito “se dá” na linguagem, pois não é algo fixo; linguagem que não está à disposição do intérprete e que não é um instrumento, pois ela não permite que o operador do Direito “assujeite-o” como quem “assujeita” um objeto. Em síntese, a prática do direito não é silogismo; b) reconhecer a existência de uma “baixa constitucionalidade” em terra brasilis (Streck), que não permite a compreensão adequada do Direito nos quadros do Estado Social e Democrático de Direito e que faz com que continuemos, por um lado, compreendendo, à moda liberal, o juiz como um “espectador” ou mero “mediador” (passivo) de um conflito, e o processo como “processo escrito e dominado pelas partes”, e, por outro, à moda “socializante”, o juiz como um “autoritário”, de função “paternalista”, e o processo como “instituição estatal de bem-estar social” (Klein), cujas respostas dependem cada vez menos da “fala” das partes.
Francisco deixa claro que pretende fornecer subsídios para o desenvolvimento de uma teoria processual que, ao mesmo tempo, seja hermenêutica e democrática, fazendo jus aos desafios que o neoconstitucionalismo propõe à Justiça Constitucional. Daí a importância de se resgatar a “estratégia” da leitura moral das cláusulas constitucionais importantes, tais como as do Devido Processo Legal, contraditório e ampla defesa, que devem ser compreendidas como “veículo de princípios morais 'abstratos'”, enfeixados no sistema constitucional e principiologicamente coerente, que comungue de uma “teoria moral” determinada: a de que o cidadão possui direitos morais “contra” o Estado, cuja importância não se pode dobrar à “vontade da maioria”, pressuposto esse de uma autêntica democracia, em linguagem dworkiniana.
O processo, pois, deve viabilizar “participação”, permitindo ao cidadão expor argumentos (de princípio). E nesse sentido há uma importante contribuição da dita “Escola Mineira do Direito Processual”, com base no paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito (Habermas), que propõe um “processualismo constitucional democrático” caracterizado pela “comparticipação processual”, policêntrica e interdependente, pelo resgate da leitura “forte” dos princípios processuais constitucionais e do papel técnico e institucional do processo.
Embora Habermas e Dworkin reconheçam a natureza deontológica da validade jurídica e  a necessidade de uma produção legítima do Direito, haverá, no entanto, uma divergência central entre a Crítica Hermenêutica do Direito, trabalhada por Lenio e Francisco a partir de Dworkin, e a compreensão procedimental da democracia, desenvolvida pelos mineiros, que reside na “cisão” entre os “discursos de fundamentação” e de “adequação”; cisão com a qual a hermenêutica filosófica não convive, pois não reconhece a cindibilidade – que de fato não há – entre interpretação e aplicação, não sendo possível, pois, falar em interpretação sem situações de aplicação, não havendo, portanto, possibilidade de se desonerar o juiz do seu papel de elaborar o “discurso fundamentador”, uma vez que a validade não (pode) decorre(r) tão-somente de uma “justificação prévia”, fruto de um “devido processo legislativo”. Ou seja: “só interpretamos aplicando!”, nas palavras do autor.
O que Francisco Motta pretende afirmar, no fundo, é que as lições da Escola Mineira são importantes, mas que há, sim, necessidade de, obedecidos os supostos centrais do processo jurisdicional democrático, se entender o resultado do processo como “interpretativo”. Esse resultado, porém, poderá ser “não-legítimo”, caso seu conteúdo não se afine com a “materialidade da Constituição”. E aqui Francisco é certeiro: “o procedimento, por si só, não legitimará a resposta obtida com o processo, que é – também ele – interpretativo, e que deverá (...) assumir a 'responsabilidade' de ser interpretativo, de trabalhar com categorias interpretativas e de se ver e envolver sujeitos que (desde já sempre) interpretam”.
Os “traços básicos” da leitura moral da Constituição a respeito do processo, segundo o autor, assim ficariam enfeixados: isonomia, juiz não-protagonista, contraditório (influência dos argumentos de princípio trazidos pelas partes), observância dos demais princípios processuais, tais como a tempestividade da tutela em favor do devido processo, entendido como acesso a uma ordem jurídica constitucional principiologicamente coerente, restando ao juiz o “dever fundamental” de fundamentar suas decisões, e não só de atender ao procedimento, fornecendo “boas respostas”, “respostas adequadas constitucionalmente” (Streck) ou “hermeneuticamente corretas”.
O capítulo II da obra resenhada explicita melhor algumas noções que são trabalhadas ao longo do texto. A partir de Dworkin, o autor enfrenta os três preceitos-chave que definem as posturas positivistas - a) o direito de uma comunidade é um conjunto de regras especiais que visam determinar quais são as condutas passíveis de coerção ou punição pelo poder público. Há “testes de pedigree” para verificar quais as regras válidas; b) quando um caso não estiver coberto por uma das regras, o caso não pode ser resolvido pela aplicação do direito, mas pelo “discernimento pessoal” do juiz; c) ter obrigação jurídica é dizer que o caso enquadra-se na regra jurídica válida que exige que alguém faça ou deixe de fazer alguma coisa -, atacando, como faz o jusfilósofo norte-americano, a discricionariedade judicial em seu sentido “forte”, sinônimo de decisionismo. Após descrever a teoria de Herbert Hart, que vê o Direito como um sistema de regras em que, nos casos nebulosos, o juiz, em face à “textura aberta” do Direito, age com discricionariedade, Francisco aponta para a discussão de Hart com Dworkin, para quem o Direito, mais que um sistema de regras, é um sistema de princípios, que não podem ser considerados como um “número fixo de padrões”, mas, sim, “exigências” de equidade, justiça ou outra dimensão da moralidade, que se chocam contra o positivismo, desconhecedor que é do “problema interpretativo” do Direito.
Dworkin defende os chamados “direitos políticos preferenciais” (background rights), notadamente aqueles derivados do “direito abstrato à consideração e respeito”, que preexistem ao Estado e que por isso podem ser opostos a ele. Reconhece-se, assim, um caráter normativo das imposições de perfil moral (justiça, equidade etc.) veiculadas pelos princípios que exercem uma espécie de “força gravitacional” sobre a argumentação judicial.
O Direito, em Dworkin, é uma unidade coerente, devendo ser entendido em sua “integridade”. Sua justificativa (do Direito) aponta para uma “personificação moralmente íntegra” em que as preocupações e tradições morais da comunidade devem ser identificadas pelo operador do Direito. E é nos princípios que o jurista identificará o sentido das regras. Daí a não-oposição entre regras e princípios que, mais tarde, Lenio, com olhos postos na diferença ontológica (o ser é o ser do ente e o ente só é em seu ser) dirá que realmente não existe, justamente porque o princípio é instituidor e está por detrás da regra.
A análise de Francisco passa pela descrição do juiz Hércules (metáfora cunhada por Dworkin) que, apesar de ser considerado (ele, Hércules) um jurista com capacidade sobre-humana, não é um “protagonista”, um “solista”, mas alguém que compreende o Direito como uma totalidade, levando em consideração o que os juízes fizeram no passado e fazem no presente, além da produção legislativa. Hércules é o juiz que “presta contas” à Constituição e ao seu conjunto principiológico, o que faz com que encontre no Direito soluções que não se ajustam à sua preferência pessoal, tarefa essa que deve(ria) ser de todos os operadores do Direito. Assim é que Hércules pode dar “boas respostas”, “respostas corretas”, o que explica por que os juízes não podem ficar desonerados do dever de fundamentar suas decisões com argumentos de princípio. Francisco lembrará, então, que o juiz, por integrar uma comunidade de pessoas livres e iguais, não é um “outsider”, devendo respeitar a produção democrática do Direito, aceitando a noção de que as pessoas têm direitos “contra” o Estado, em especial o de serem tratadas com igual consideração e respeito. “Sua” jurisdição, portanto, tem de ser justificada perante essas exigências. Numa palavra, com o autor, “se não podemos exigir do juiz que chegue a respostas corretas sobre os direitos de seus cidadãos, podemos ao menos exigir que o tente!”. Os juízes, assim, não podem desconsiderar o seu dever (constitucional) de elaborar uma teoria coerente e que não leve em consideração a “complexidade normativa do Direito”. A resposta correta será uma resposta à discricionariedade “forte” (decisionismo), a que se refere Dworkin, “quebrando” o protagonismo judicial, cabendo ao processo, portanto, fornecer as condições de possibilidade para a sua obtenção! O processo jurisdicional democrático, nesse sentido, é “democratizante”, pois (deve) conta(r) com a participação efetiva das partes.
Após tratar das noções acima referidas, Francisco passa a reconhecer evidentes pontos de contato entre as teorias de Dworkin e de Gadamer, invocando, então, a tradição gadameriana e o Direito como Integridade dworkiniano para dizer que Dworkin sempre teve presente a idéia de que não há cisão entre os momentos da compreensão-interpretação-aplicação, o que o aproxima de Gadamer, pois, consoante o jusfilósofo norte-americano, “os juízes não decidem os limites das restrições institucionais, para só então deixar os livros de lado e resolver as coisas a seu próprio modo”. Dworkin, portanto, desenvolve uma “interpretação construtiva”, tendo por objeto as relações sociais (leia-se “o Direito”), que, à toda evidência, prende-se à hermenêutica da tradição gadameriana e à idéia de que há uma “circularidade” da hermenêutica na prática cotidiana, sendo a interpretação criativa um “caso de interação entre propósito e objeto” que, naturalmente, “envolve o intérprete (e seu propósito) com o objeto a ser interpretado”, devolvendo-o, portanto, ao “círculo hermenêutico” (Heidegger e Gadamer). E aí Dworkin explicitará ainda mais seu apego a Gadamer, ao se posicionar francamente contra a idéia de uma “intenção histórica” que possa ser o “fundamento constitutivo da compreensão”. Com isso Dworkin reconhece claramente a impossibilidade de reconstrução da “intenção” do autor de um texto (no caso o legislador) e deixa entender que o que importa como condição de possibilidade para a construção da “resposta correta” é a “pergunta correta”, nos moldes do que já ensinava Gadamer.
O grande desafio da prática do Direito, que é interpretativa, é, segundo o autor, o de trabalhar uma postura que concilie o caráter produtivo (criativo) da hermenêutica com a “exigência democrática de que o tribunal 'construa' suas decisões com a colaboração efetiva das partes, e de que o resultado deste processo seja um provimento que honre a materialidade da Constituição e a história judiciária produzida com sucesso”. É a superação desse desafio que possibilitará combater o protagonismo judicial, possibilitando que a decisão judicial seja uma resposta “do Direito”, e não simplesmente “do juiz”.
A Constituição, nesse aspecto, não poderá ser lida como uma “metanorma” (grundnorm), mas como integrante do Direito, cuja pretensão de eficácia somente pode ser atendida quando “aplicada”! E é claro que não se descobrirão sentidos, significados de textos, pois a prática do Direito é interpretativa no sentido de interpretação da “história jurídica”, combinando elementos de descrição e valoração, mas com estes não se confundindo. Vem daí a “combinação” que Dworkin faz entre Direito e literatura, utilizando a interpretação literária como modelo para o modo central da análise jurídica. Cada juiz, nesse sentido, assume o seu papel de “romancista em cadeia”: “deve ler o que outros juízes fizeram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, ou seja, como cada um deles (também) formou uma opinião sobre o 'romance coletivo' escrito até então”. Assim, diz Francisco referindo-se a Dworkin, “cada juiz deve considerar-se como 'parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, da qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que faz agora”. Para isso, “o juiz deverá interpretar o que aconteceu antes e determinar, segundo seu próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores, que deverão ser tomadas 'como um todo', o que significará o 'propósito ou o tema da prática até então'”.
O autor desenvolve, a partir daí, a concepção defendida por Dworkin no sentido de que, além de uma “coerência de estratégia”, os juízes devem observar uma “coerência de princípio”, que exija que os diversos padrões regentes do uso estatal da coerção contra os cidadãos sejam coerentes expressando uma única e abrangente visão de justiça. Aqui o ponto que Francisco pretendia atingir: o Direito como Integridade, que pressupõe  uma compreensão do Direito como “totalidade”, “completeza”, em que as pessoas têm direito a uma “extensão coerente”, fundada em princípios, das decisões políticas do passado, ainda quando os juízes divirjam profundamento sobre seu significado. A integridade, nesse sentido, é um “ideal político” que explica as práticas constitucionais, constituindo-se em forma de legitimação política fundada na “fraternidade”, tão cara a uma comunidade que se pretenda “comunidade de princípios”. Dworkin acrescenta às idéias rousseauniana e kantiana de “autolegislação” a noção de “integridade”, que deve ser aceita por uma comunidade de princípios. A comunidade de princípios, fiel à integridade, pode “reivindicar a autoridade de uma verdadeira comunidade associativa”, pois suas decisões coletivas são “questões de obrigação”, e não apenas de “poder”. A comunidade de princípios, em suma, reivindica a autoridade moral em nome da fraternidade (Dworkin).
O Direito como Integridade conviverá com a “verdade hermenêutica” que deriva dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a “melhor interpretação construtiva” da prática do Direito de uma comunidade. É que o Direito como Integridade determina aos juízes que estes admitam, tanto quanto possível, que o Direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios que exigem do juiz “por à prova” sua interpretação da vasta rede de estruturas e decisões políticas da sua comunidade. Em suma, o juiz tem o dever de interpretar a história jurídica que encontra, e não de inventar uma “história melhor”; seu dever é atender a alguma concepção de integridade e de coerência do Direito como instituição (doutrina da responsabilidade política do juiz).
Francisco deixa claro, no entanto, que as respostas, evidentemente, não estão “prontas”, pois a integridade convive com a possibilidade de alterações das decisões anteriores. Ou seja, não está em jogo “história versus justiça”, uma vez que a decisão judicial que eventualmente venha a “quebrar” um precedente estará apenas “conciliando” considerações que, em geral, se combinam em qualquer cálculo de direito político, o que não é causa de surpresa alguma, pois a decisão judicial nada mais faz do que tornar efetivos direitos políticos já existentes. Aliás, o “rompimento” com a tradição, já dizia Gadamer, faz parte da “essência” (sic) do humano, mas isso só é possível com uma “consciência hermenêutica desperta e vigilante”.
No fundo, o autor defende, com Dworkin, a possibilidade de novos enfrentamentos de problemas pelo juiz com olhos postos na integridade, pois os indivíduos têm direito à aplicação consistente dos princípios sobre os quais se assentam suas instituições, uma vez que, apesar de a vontade popular (“moralidade constitucional da comunidade”) por vezes poder ser incoerente, mesmo assim o cidadão tem um direito a exigir decisões coerentes. Assim como a hermenêutica, também a integridade não tem a pretensão de ter a “última palavra”, mas há que se convir que tem a “primeira palavra”. O objetivo da integridade, dirá Francisco, é um “princípio”!
O Capítulo III da obra é, na verdade, uma homenagem a Ovídio Baptista da Silva, sem dúvida um (ou talvez o) dos melhores processualistas que o Brasil já produziu. Para o autor, a obra do Prof. Ovídio é uma “estação necessária” na viagem de qualquer um que se aventure nas coisas do processo. E é neste capítulo que Francisco aproximará as lições de Ovídio a respeito do dever constitucional de fundamentar decisões à premissa dworkiniana de que o tribunal deve conduzir sua atividade jurisdicional por argumentos de princípio.
A análise parte da idéia de que o paradigma racionalista, como defendia Ovídio, reduziu o fenômeno jurídico ao “mundo normativo” em que a lei tem um “sentido unívoco”. O Direito Processual Civil, por sua vez, não acompanhou as transformações sucessivas aos movimentos liberais que culminaram na Revolução Francesa, circunstância que se reflete atualmente na crise de legitimidade do Poder Judiciário. A proposta de Motta é a de que se invista na compreensão hermenêutica do Direito Processual Civil, promovendo, em suas palavras, uma “articulação interdisciplinar”, de onde se possa “vislumbrar os compromissos da ciência processual com a História” (Ovídio); tarefa que não é fácil, uma vez que o paradigma racionalista comprometeu o Direito Processual, sujeitando-o a princípios metodológicos e fazendo dele uma “ciência” e do Direito um “conjunto sistemático de conceitos, com pretensão à eternidade”, como já ensinava o Prof. Ovídio.
Comprometidos com a “certeza”, com o valor “segurança”, com a “matemática” (Leibniz), com a “vontade da lei” e com uma pretensa “neutralidade”, o Direito e a magistratura ficaram subordinados às leis, sem qualquer compromisso com a justiça concreta. Ovídio, no entanto, pensa que o Direito deve, sim, fornecer instrumentos e condições concretas que possam contribuir para a realização de uma sociedade mais próxima à justiça, que se desvela em cada caso, não podendo a discricionariedade do ato judicial transformar-se em arbitrariedade. E para que isso aconteça os juízes não podem ser “burocratas”, “apolíticos”, “alguém que não pode ‘interpretar’” e que consequentemente não “fundamenta” seus provimentos. Afinal de contas, o juiz não pode ser um “irresponsável”. A aposta aqui, então, volta-se para a hermenêutica, pois o Direito depende de uma compreensão hermenêutica, compromissada com a faticidade, “de olho” no fenômeno. Dito de outro modo, nas palavras de Francisco Motta: o intérprete deve assumir-se “como” intérprete!
Mas há divergências entre o pensamento do autor e o do Prof. Ovídio. Embora Ovídio não negue a importância da Constituição, nosso mestre é cético em relação à função do Direito no sentido de transformar o estado das coisas, não enxergando no neoconstitucionalismo a solução para o Direito. A crise do Direito é uma crise de paradigma: o Direito, na modernidade, foi afastado da justiça para se tornar um “braço” do poder. Por ser ideológico (a “essência da ideologia moderna”), o Direito teria perdido sua alma e o Judiciário, na verdade, funcionaria “bem”, pois foi concebido dentro de um sistema que o concebeu para busca de certezas. O paradigma econômico manteria, assim, o Direito refém de uma crise impossível de ser superada pelo neoconstitucionalismo, pois o “direito racional” não pode “salvar-se” por si mesmo, “tão-somente” a partir da Constituição.
Francisco dirá, então, que, primeiro, o Brasil, por ser um país de modernidade tardia, necessita de um “constitucionalismo radical”; segundo, ou se garantem e se concretizam direitos fundamentais ou renunciamos à substancialidade, restando “orar” pela Política, que pode vir a sonegar a faticidade do Direito com prejuízos evidentes à minorias. Se a Constituição é o “elo” de conteúdo entre Política e Direito (Streck), de modo que sua concretização passa também pela Política e pela Moral “institucionalizada” nos direitos fundamentais e princípios, é a partir dela, como “evento” que estabelece padrões do justo, que podemos atribuir novos sentidos ao Direito. Mas o autor vai mais longe: consegue desfazer algumas leituras mais apressadas que o Prof. Ovídio fez de Dworkin, quando, junto com Castanheira Neves, o acusou de ser um “iluminista”, afirmando que o Professor norte-americano “não raciocina a partir da experiência forense, visão indispensável a quem pretende envolver-se com o processo”. De fato, as observações de Ovídio aqui apresentam um problema: Dworkin sabe que “não há hermenêutica sem fatos”, interessando, sim, que o juiz se assuma “como” juiz. Na verdade, é isso que Dworkin prega. É essa a questão que lhe interessa: a assunção da responsabilidade do juiz, no que, fundamentalmente, não difere de Ovídio, pois este também defende o dever fundamental de fundamentação das decisões judiciais. E há outro detalhe: toda a contribuição teórica de Dworkin, afirma Francisco Motta, tem como “ponto de partida” casos controversos que ocorreram nos Estados Unidos, sendo sua pretensão “compreensiva”, antes de ser “estruturante” da prática judiciária. É que Dworkin sabe muito bem que há diferença entre texto e norma, que o Direito (como Integridade) exige coerência de princípio, mas que a justiça e a equidade andam ao lado da coerência. Uma leitura moral da Constituição, embora possa coincidir com preferências políticas pessoais – acusação que é feita por Castanheira Neves a Dworkin -, exige, no entanto, o reconhecimento da integridade como ideal e a ser perseguido, cobrando dos juízes coerência. E aí está o diferencial (ou, por incrível que pareça, a “aproximação” paradoxal) entre Castanheira e Ovídio, e Dworkin: enquanto este, Dworkin, deixa claro que as opiniões dos juízes expressam suas convicções de moralidade política, pois “o intérprete integra o resultado da interpretação”, e que, bem por isso, há que se respeitar a coerência e integridade do Direito, Castanheira Neves e Ovídio, apesar de também afirmarem que a “neutralidade” judicial é uma “quimera”, acabam esquecendo que a coerência (de princípio) está imbricada no raciocínio jurídico, não sendo algo que se incorpora a posteriori, como se de fora fosse adjudicada. E é a coerência de princípio que afastará a discricionariedade judicial enquanto “preferência pessoal”. Lembremos que não há cisão no processo compreensivo. A coerência deve ser “pré-compreendida” como um padrão, e não como uma “formalidade” tão-somente.
Ponto que merece destaque no capítulo é a crítica (sempre respeitosa) que o autor faz à Escola Mineira, notadamente às lições de Rosemiro Pereira Leal e André Cordeiro Leal que, em crítica a Ovídio Baptista da Silva, deram a entender que o fortalecimento dos poderes do juiz, defendido por Ovídio, rumaria a uma espécie de “autocracia” judicial na criação do Direito, como se o juiz fosse um sujeito “solipsista” com “acesso exclusivo” aos “significados e alcances” das “realidades sociais”. De fato, a crítica de ambos não procede. Tanto é assim que os pontos de contato entre Ovídio e Dworkin fazem-se presentes no “dever de fundamentar decisões” (Ovídio) e na exigência de que os provimentos judiciais sejam “vazados” em “argumentos de princípio” (Dworkin). Aí Francisco enveredará pelo “diálogo necessário” entre Lenio Luiz Streck e Ovídio Baptista da Silva, provando que, na verdade, Ovídio defende a figura de um juiz responsável, democrático, atento aos argumentos das partes, cuja decisão é fundamentada, não considerando válida, portanto, qualquer decisão, circunstância que o afasta do positivismo da “teoria pura” de Kelsen, que permite “múltiplas respostas”. Novamente, Dworkin é invocado para lembrar que a lei, embora justificada por argumentos de “política”, ao reconhecer um direito a alguém, faz com que o beneficiário da norma não mais dependa dos originais argumentos de política para obtenção do benefício, pois a lei o terá transformado em uma “questão de princípio”!
Sempre é bom lembrar que a Democracia não se resume ao império da soberania popular. Ela também depende de que sejam assegurados os direitos fundamentais das minorias sem influência política. A legitimidade dos juízes, assim, não fica subjugada ao argumento de que uma decisão legislativa possa ser mais adequada do que uma decisão judicial. O ideal democrático da igualdade do poder político pode, sim, ser promovido com a transferência das decisões sobre direitos das legislaturas para os tribunais, não havendo qualquer contraste entre Democracia e Estado de Direito; pelo contrário. Por isso o autor dirá que “Cuida-se, ambos, de valores políticos enraizados num ideal mais fundamental, o de que qualquer governo aceitável deve tratar as pessoas como iguais; e um Estado assim constituído encoraja cada indivíduo a supor que suas relações com outros cidadãos e com o próprio governo são questões de justiça (...) é para isso que se aposta num fórum independente, um fórum de princípio”. Esse fórum de princípio é “a promessa de que os conflitos mais profundos, mais fundamentais entre os indivíduos e a sociedade irão, algum dia, em algum lugar, tornar-se finalmente questões de justiça”.
O Direito significa bem mais do que o exercício de um poder discricionário (no sentido forte) das autoridades públicas. Antes disso, é uma “questão de direitos e deveres”, como pontua Dworkin.
O juiz “projetado” pelo jusfilósofo norte-americano, em suma, é o “juiz responsável” de Ovídio: tem um poder discricionário apenas em sentido fraco. Sua exigência é a de que “motive completamente” o ato judicial e que sua argumentação “convincente”, que deve levar em conta todos os “aspectos relevantes do conflito” (“análise crítica dos fatos”), seja uma “argumentação de princípio”. A tese de discricionariedade proposta por Ovídio é uma tese de “boas respostas”, comprometida; enfim, uma doutrina de “responsabilidade dos juízes”. Somadas ambas as teses (Dworkin e Ovídio) à tese de Lenio Luiz Streck, o resultado será um “réquiem” ao “protagonismo judicial”, como muito bem conclui Francisco.
Por fim, o autor examina, num quarto capítulo, os alicerces do mecanismo da “ponderação”, sofisticado e popular critério para solução de casos difíceis, que se deve, notadamente, a Robert Alexy, e o chamado “formalismo valorativo”, escola que tem à sua frente Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, para submeter ambas as teorias a uma “filtragem hermenêutica”.
Robert Alexy, embora possa ser tido por alguns juristas como um autor perfilhado ao “paradigma hermenêutico”, não o é. Alexy filia-se, sim, ao “racionalismo discursivo”, desenvolvendo uma “teoria da argumentação”. Após análise da teoria alexyana (distinção estrutural entre regras e princípios; abertura do direito à moral pela institucionalização dos direitos fundamentais; preocupação de descobrir os direitos que as pessoas têm; conceito de norma; vinculação entre norma e argumentação; noção de princípio como “mandamentos de otimização”; “colisões de princípios”; desdobramentos do “princípio da proporcionalidade” etc), Francisco, a partir de Arthur Kaufmann e Lenio Streck, demonstra que a teoria da argumentação não supera o positivismo, pois acaba apostando na suficiência ôntica da regra, que seria um receptáculo de sentidos, ou nas condições privilegiadas do sujeito, que então assujeitaria o objeto conforme as possibilidades de sua consciência. Nesse aspecto, a teoria da argumentação é anti-hermenêutica (Kaufmann), o que não implica que a hermenêutica seja anti-argumentativista. Daí a advertência de Ernildo Stein e Lenio Streck no sentido de que “a hermenêutica e as teorias da argumentação operam em níveis de racionalidade distintos. Enquanto a primeira funciona como um ‘vetor de racionalidade de primeiro nível’ (estruturante), (...) a segunda opera no plano lógico, apofântico, mostrativo”. Resumindo: a teoria da argumentação não substitui a hermenêutica filosófica, pois não há um modo procedimental de acesso ao conhecimento. Sentidos não estão nas coisas. Eles se dão “intersubjetivamente”, como diria Lenio. Em outras palavras, com o “método” só se lida a partir da pré-compreensão, que escapa ao sujeito e ao assujeitamento!
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, a seu turno, desenvolve um modelo de processo pautado no respeito aos princípios processuais, dentre eles o contraditório, e na contraposição ao excesso de formalismo com o propósito de solucionar a “antinomia existente entre formalismo e justiça”, problema que impede, segundo ele, a adequada realização do direito material e dos “valores” constitucionais. O formalismo-valorativo quer compatibilizar efetividade e segurança, pela organização de um “processo justo”. Francisco Motta concorda com Alvaro de Oliveira: o processo não é um fim em si mesmo. E também não é ideologicamente neutro. Seu desvirtuamento é obstáculo à realização dos direitos. E não há nada de equivocado na defesa de um processo em contraditório. O problema é que Carlos Alberto, ao tentar entrelaçar Constituição e processo jurisdicional, erra na “estratégia”, como diz Francisco, pois acaba se rendendo ao escalonamento axiológico dos princípios, mais ou menos nos moldes do que defende Alexy. E os problemas realmente começam quando Alvaro de Oliveira defende a compreensão “axiológica” da Constituição, terminando por enfraquecer seu perfil normativo e, pois, deontológico. É que, em ambientes democráticos, não há “valor” importante o bastante para que se negue o direito de quem efetivamente o tem. Tentar absorver, por exemplo, os “reclamos do povo”, como pretende o formalismo-valorativo, equivale a aniquilar o Direito democraticamente produzido e a sua almejada autonomia. No final de tudo, o formalismo-valorativo acaba apostando na discricionariedade (forte) judicial, na “consciência do juiz”, pois este passa a ter grande margem e liberdade para decidir, exatamente como pretendia Hart. Numa expressão: Alvaro cai no positivismo hartiano. Evidentemente, há outras tantas críticas que o autor faz ao formalismo-valorativo, inclusive a autores como Daniel Francisco Mitidiero e Humberto Bergman Ávila, mas cabe salientar uma em especial: a de que não precisamos ir “além do sistema” – e isso Alvaro de Oliveira acaba fazendo quando propõe o uso da “equidade” que faria com que o juiz pudesse sair da “lei” para ingressar no “Direito” – para fazer com que o Direito produza justiça. Além de assegurar a autonomia do Direito, compreender essa premissa faz com que possamos compreender adequadamente os efeitos da ruptura paradigmática proporcionada pela Constituição e os novos “sentidos” constitucionais que guiam e legitimam a jurisdição. É Francisco que lembra: “Não há nada na produção democrática do Direito (...) que deva ficar nas mãos da (de resto, insindicável – e bem por isso, antidemocrática) “melhor capacidade de julgamento” de alguém. Afinal de contas, e aqui retorno a “Chico”, “o que está em jogo (...) é o direito fundamental de o cidadão obter boas respostas em Direito”.
Recomendo, por fim, a leitura do livro por se tratar de inteligente, “autêntica e genuína expressão de uma nova jornada do pensamento jurídico no País”, como bem definiu Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira na apresenta

[1] Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Professor na Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul – AJURIS e Universidade Regional Integrada – URI, campus de Santo Ângelo.