domingo, 11 de setembro de 2011

Eficácia horizontal dos direitos fundamentais

Antigamente se pensava que os direitos fundamentais incidiam apenas na relação entre o cidadão e o Estado. Trata-se da chamada “eficácia vertical”, ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre um poder “superior” (o Estado) e um “inferior” (o cidadão).
Em meados do século XX, porém, surgiu na Alemanha a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que defendia a incidência destes também nas relações privadas (particular-particular). É chamada eficácia horizontal ou efeito externo dos direitos fundamentais (horizontalwirkung), também conhecida como eficácia dos direitos fundamentais contra terceiros (drittwirkung).
Em suma: pode-se que dizer que os direitos fundamentais se aplicam não só nas relações entre o Estado e o cidadão (eficácia vertical), mas também nas relações entre os particulares-cidadãos (eficácia horizontal).

1. Origens da teoria da eficácia horizontal

Aceita-se como caso-líder dessa teoria o “Caso Lüth”, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão em 1958.
Erich Lüth era crítico de cinema e conclamou os alemães a boicotarem um filme, dirigido por Veit Harlam, conhecido diretor da época do nazismo (dirigira, por exemplo, Jud Süβ, filme-ícone da discriminação contra os judeus). Harlam e a distribuidora do filme ingressaram com ação cominatória contra Lüth, alegando que o boicote atentava contra a ordem pública, o que era vedado pelo Código Civil alemão.
Lüth foi condenado nas instâncias ordinárias, mas recorreu à Corte Constitucional. Ao fim, a queixa constitucional foi julgada procedente, pois o Tribunal entendeu que o direito fundamental à liberdade de expressão deveria prevalecer sobre a regra geral do Código Civil que protegia a ordem pública1.
Esse foi o primeiro caso em que se decidiu pela aplicação dos direitos fundamentais também nas relações entre os particulares (drittwirkung, eficácia horizontal).

2. As várias teorias sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais

2.1. Estados Unidos: as teorias da state action e da public function

Nos Estados Unidos, por força da tradição liberal vigente, não é muito aceita a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Por isso, a Suprema Corte considera que os direitos fundamentais só são exigíveis nas relações dos particulares com o poder público (state action theory) ou, pelo menos, com um particular que desenvolva atividade nitidamente pública (public function theory)2.
É dizer: nos Estados Unidos, a Suprema Corte reconhece apenas a eficácia vertical dos direitos fundamentais.

2.2. Teoria da eficácia indireta e mediata

Para os partidários dessa teoria, os direitos fundamentais aplicam-se nas relações jurídicas entre os particulares, mas apenas de forma indireta (mediata), por meio das chamadas cláusulas gerais do Direito Privado.
Em outras palavras: a regra geral, no Direito Privado (relações entre os particulares), seria a autonomia privada; os direitos fundamentais incidiriam apenas por meio de cláusulas gerais existentes no próprio Direito Privado, como ordem pública, liberdade contratual, boa-fé, etc.
Exemplificando: se alguém aderir ao estatuto de uma associação, e essa norma previr a possibilidade de exclusão sumária, tal regra seria admissível, pois derivou da autonomia privada do associado em aceitá-la. O direito à ampla defesa não incidiria diretamente na relação entre o associado e a associação, mas apenas de forma indireta (mediata), quando, v.g., a associação tomasse uma posição contrária à boa-fé objetiva, induzindo o associado a crer que tal norma não seria aplicada: nessa situação, a cláusula geral da boa-fé autorizaria a incidência (indireta) dos direitos fundamentais.
No dizer do Tribunal Constitucional Alemão, os direitos fundamentais serviriam como uma “eficácia irradiante” sobre a interpretação do Direito Privado, mas não incidiriam diretamente nas relações particular-particular.
Foi a posição que o Tribunal tomou no julgamento do já citado Caso Lüth3.
Essa tese é criticada por Canaris, que sustenta a incompatibilidade desse pensamento com a Lei Fundamental alemã:

“Se (...) se partir do artigo 1º, n. 3 da LF, esta conclusão não pode ser considerada correcta, pois esta disposição impõe, justamente, uma eficácia normativa imediata dos direitos fundamentais”4.

Sendo assim, de forma idêntica se pode sustentar a incompatibilidade dessa teoria com o ordenamento brasileiro, já que o artigo 5º, §1º, prevê que as normas definidoras de direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata5.

2.3. Teoria da eficácia direta e imediata

Defendida na Alemanha por setores minoritários da doutrina e da jurisprudência, essa foi a tese que prevaleceu no Brasil, inclusive no Supremo Tribunal Federal6.
Segundo o que preconiza essa corrente, os direitos fundamentais se aplicam diretamente às relações entre os particulares. É dizer: os particulares são tão obrigados a cumprir os ditames dos direitos fundamentais quanto o poder público o é. As obrigações decorrentes das normas constitucionais definidoras dos direitos básicos têm por sujeito passivo o Estado (eficácia vertical) e os particulares, nas relações entre si (eficácia horizontal direta ou imediata)7.
Como já dissemos, essa teoria é aceita no Brasil, tanto pelo STF quanto pelo STJ. Um exemplo de aplicação prática da eficácia horizontal foi a decisão do STF que impôs à Air France (empresa privada) igualdade de tratamento entre trabalhadores franceses e brasileiros8; bem como o acórdão, também do Supremo Tribunal Federal, que impôs a obrigatoriedade do respeito à ampla defesa para a exclusão de associado em associação privada9.
Jurisprudência: STF, Segunda Turma, RE 201.819/RJ, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006:
“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.
I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.
II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.(...)”.


Questões de concursos:

1) (FUNIVERSA/PCDF/AGENTE/2009) Tendo em conta o histórico do nascimento dos direitos fundamentais, não há que se considerar a sua aplicação em face dos particulares.

2) (CESPE/TJDFT/ANALISTA JUDICIÁRIO – EXECUÇÃO DE MANDADOS/2008) Se uma empresa francesa, estabelecida no Brasil, conferir vantagens aos seus empregados franceses, diferentes e mais benéficas que as vantagens concedidas aos empregados brasileiros. Nessa situação, configurar-se-á ofensa ao princípio da igualdade, pois a diferenciação, no caso, baseia-se no atributo da nacionalidade.

3) (CESPE/TJDFT/ANALISTA JUDICIÁRIO – EXECUÇÃO DE MANDADOS/2008) A retirada de um dos sócios de determinada empresa, quando motivada pela vontade dos demais, deve ser precedida de ampla defesa, pois os direitos fundamentais não são aplicáveis apenas no âmbito das relações entre o indivíduo e o Estado, mas também nas relações privadas. Essa qualidade é denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Respostas: 1.E. 2.C. 3.C.

1 Cf. narrativa completa do caso, inclusive com a ementa do julgado, em DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, pp. 264 e ss. São Paulo: RT, 2007.
2 Nesse sentido, Paulo Gustavo Gonet Branco afirma que, “no Direito Americano, predomina a tese de que os direitos fundamentais são oponíveis apenas ao Estado”. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, et al.. Curso de Direito Constitucional, p. 272. São Paulo: Saraiva, 2007.
3 Nesse sentido: TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 530. São Paulo: Saraiva, 2010.
4 CANARIS, Claus-Wilhem. Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 29. Coimbra: Almedina, 2006 (tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto).
5 É a posição, entre outros, de Paulo Branco: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, et al. Curso de Direito Constitucional, p. 269. São Paulo: Saraiva, 2007. Cf. também CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Constitucional, p. 616. Salvador: JusPodivm, 2010.
6 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, et al. Curso de Direito Constitucional, p. 269. São Paulo: Saraiva, 2007.
7Nem toda a doutrina brasileira, porém, concorda com a adoção da teoria da eficácia direta ou imediata. Para uma postura crítica, inclusive considerando que há uma tendência no STF a reverter essa posição, confira-se: TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 530. São Paulo: Saraiva, 2010. No mesmo sentido: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 57. São Paulo: RT, 2007.
Não concordamos, porém, com a crítica de que essa teoria transformaria todas as teses do Direito Privado em teses constitucionais. A constitucionalização do direito é um fenômeno inegável, e, com isso, qualquer aplicador do Direito tem que, antes de aplicar as leis, verificar-lhes a compatibilidade com a Constituição. Embora não as possam declarar inconstitucionais (só os juízes ou tribunais têm autorização para fazê-lo), os intérpretes devem ler as leis à luz da Constituição (princípio do Estado Constitucional de Direito). Ademais, a autonomia privada deve ser sempre sopesada com o respeito aos direitos fundamentais.
8 STF, RE 161.243, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 19.12.1997.
9 STF, RE 158.215-4/RS, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ de 07.06.1996.
by João Trindade Cavalcanti Filho, Analista Processual do MPU, Pós-Graduando em Direito Constitucional, professor de Direito Constitucional de cursos de Pós-Graduação e preparatórios para concursos em Brasília. 
 Disponível em: http://direitoconstitucionaleconcursos.blogspot.com/. Acesso em: 10 set. 2011.

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