domingo, 25 de setembro de 2011

50 Anos de Direitos Humanos

Na atualidade , quase no limiar do século XXI, costuma-se distinguir os Direitos Humanos em três níveis: a) os direitos de 1ª geração, relativos ao princípio da liberdade, que são os direitos civis e políticos; b) os direitos de 2ª geração, inerentes ao princípio da igualdade, que são os direitos econômicos, sociais e culturais; e, c) os direitos de 3ª geração, vinculado ao princípio da solidariedade, que se expressa no direito dos povos ao desenvolvimento com justiça social. Pois bem, esse tratamento sistemático e didático da matéria tem sua origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, solenemente proclamada na 3ª sessão ordinária da Assembléia Geral da ONU, em Paris, na data de 10 de dezembro de 1948, e que definiu, como um “padrão comum de realização para todos os povos e nações’, os direitos humanos e liberdades fundamentais – noções até então difusas, tratadas apenas, de maneira não-uniforme, em declarações e legislações nacionais.
A Declaração Universal, contendo 30 artigos, proclamou os direitos e liberdades fundamentais “como o ideal comum a ser atingido por todos”, e tratou de exaustivamente enumerá-los com a finalidade de permitir-lhes melhor proteção jurídica, partindo do postulado geral de que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos (...) e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (art. 1). É deveras significativo que a Assembléia Geral , preliminarmente, tenha dado ênfase ao verbo proclamar, pois patenteia assim que não houve concessão ou mero reconhecimento de direitos, e com isso os remete à própria natureza humana, razão pela qual a ninguém (nem mesmo a ONU) cabe legitimidade para retirá-las de qualquer indivíduo.
A Declaração de 1948, dentre outros aspectos, se fez meritória não só por atualizar o rol dos direitos, em face das características da sociedade industrial, mas sobretudo por preceituar como compromissos de todos – Estados e indivíduos, governantes e governados – a tarefa permanente da construção de um mundo onde todos os homens e mulheres possam usufruir de uma vida digna, com pleno atendimento de suas necessidades primárias, materiais e espirituais.
Muito embora, originariamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tivesse um valor meramente moral, pois apenas indicava diretrizes a serem seguidas nesse assunto pelos Estados, a sua obrigatoriedade foi, posteriormente consagrada pela Ata Final da Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, celebrada em Teerã (1968), ao aclarar que a “Declaração (de 1948) enuncia uma concepção, comum a todos os povos, dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana e a declara obrigatória para a comunidade internacional”. Além disso, seus dispositivos têm sidos aplicados reiteradamente pela Assembléia Geral em resoluções que condenam violações de direitos humanos e têm exercido uma grande influência na legislação ordinária e nas constituições dos países, sendo inclusive utilizada por tribunais nacionais.
Por outro lado, cabe registrar que, justamente pela tibieza daquela Declaração no que concerne à sua eficácia, notadamente quanto aos direitos coletivos, é que a ONU se preocupou, após 1948, em ampliar a garantir tais direitos. Em consequência, a Assembléia Geral aprovou, em 16 de dezembro de 1968, . o “Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (juntamente com o “Pacto de Direitos Civis e Políticos”), e que consagrou a 2ª geração dos direitos humanos, pertinentes ao princípio da igualdade atribuindo-se ao Estado o dever de possibilitar amplamente os recursos devidos À satisfação de tais direitos econômicos, sociais e culturais.
Aqui, é preciso deixar claro, porém, que não se deve entender de forma estanque e desvinculada as várias categorias de direitos humanos. Pelo contrário, nas últimas décadas intensificaram-se as decisões e as recomendações sobre a executabilidade global dos direitos, principalmente os de 1ª e 2ª geração (individuais e coletivos). O veredicto irrecorrível nessa questão foi dado pela Conferência de Teerã (1968), quando a ONU, comemorando o 20º aniversário da Declaração Universal, proclamou: “Sendo indivisíveis os direitos do homem e as liberdades fundamentais, o gozo completo dos direitos civis e políticos é impossível sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Os progressos duráveis através da aplicação dos direitos do homem supõem um política nacional e internacional racional e eficaz de desenvolvimento econômico e social”.
Essas questões, da indivisibilidade dos direitos e do papel do Estado como agente promotor das garantias e direitos chamados sociais, bem como da universalidade dos direitos humanos e da necessária participação dos indivíduos na consolidação, forma reafirmadas e aprofundadas quando da II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, finalizada em Viena, em 25 de junho de 1993. Suas conclusões deixam claro que, dentre outras coisas, tais direitos são hoje cada vez menos matéria de jurisdição doméstica dos Estados e cada vez mais presentes em todos os domínios da atividade humana. Além disso, a Declaração e Programa de Ação de Viena enfatiza uma opção preferencial pelos socialmente excluídos e pelos segmentos populacionais miseráveis, ao mesmo tempo que ressalta a importância do diálogo e da cooperação entre governos e organizações não-governamentais nesse particular.
A Declaração de Viena, indubitavelmente, fortalece o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, cuja tendência é de exigir, ainda mais incisivamente, ações do governo e da sociedade a respeito da situação dos direitos humano, em especial a propósito dos direitos econômicos e sociais. Em decorrência, ganha ainda maior premência a necessidade de atribuição de prioridade absoluta, pelos governos e pela sociedade, ao combate às desigualdades sócio-econômicas vigentes, bem como à implementação de políticas e esforços para a erradicação da fome e da miséria, o que inclusive nos remete À realidade brasileira.
Se é certo que os direitos ligados ao princípio da liberdade constituem, felizmente, uma reconquista inigualável do Brasil de nossos dias, é também cristalino que só a liberdade não é suficiente para assegurar ao país a plenitude do Estado De-mocrático de Direito. Trabalhar para a eficácia de todos os direitos humanos é a tarefa que se nos impõem o momento e a conjuntura nacional.
E a passagem do cinquentenário da Declaração Universal nos alerta que o exercício da cidadania também é um dever de cada um de nós com a construção de um país que assegure a cada pessoa o alcance dos direitos humanos em sua plenitude.
Wagner Rocha D’Angelis, advogado, historiador, professor universitário, pós-graduado em Direito Internacional (USP) e pós-graduado em Direito do Estado (UFPR) –1998.



Portal Internacional do STF cria perfil no Twitter

O Portal Internacional do Supremo Tribunal Federal (STF), que recentemente completou um ano na internet com mais de 33 mil vistas, agora também está no Twitter (twitter.com/stf_intl). Os usuários poderão acompanhar, em tempo real, a interação do STF com as demais cortes constitucionais de todo o mundo, além de informações sobre a estrutura, a competência e a jurisprudência do Supremo, sobre a organização do Poder Judiciário e sobre o sistema legislativo brasileiro.
Sobre o portal
Na versão em inglês, os mais altos índices de acesso ao Portal Internacional são relativos à história do STF e à versão da Constituição de 1988 em inglês (no link “About the Court"). Também merecem destaque os acessos às decisões selecionadas de jurisprudência e também ao "Permanent Forum of the Supreme Courts of MERCOSUR", o "II World Conference on Constitutional Justice" e sobre as "Best practices for the Development of Justice".
Já na versão do portal em espanhol, os destaques são “Relación de los ministros del Supremo Tribunal (Imperio/República)”, “Estructura actual del Supremo Tribunal Federal”, além dos programas de intercâmbio, informações sobre a "Conferencia Mundial sobre Justicia Constitucional" e o “Repositorio de Jurisprudencia constitucional de los países de lengua portuguesa”.
Para os usuários de língua portuguesa, o acesso à jurisprudência da Suprema Corte brasileira é feito por meio da base de dados, que dispõe de mecanismos de pesquisa, acessíveis por meio do link “Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”. Já para o público internacional, há links para decisões selecionadas, temas em matéria constitucional e bancos internacionais de jurisprudência como a Comissão de Veneza, o Global Legal International Network (GLIN), o Mercosul e a Conferência das Cortes Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa.

Fonte: STF

Empresas de refeições coletivas questionam lei que flexibiliza alíquotas para seguro-acidente

A Associação Brasileira das Empresas de Refeições Coletivas (Aberc) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4660) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra dispositivos da Lei nº 10.666/2003 e do Decreto nº 3.048/1999, com a redação dada pelo Decreto nº 6.957/2009, que tratam do índice de modulação das alíquotas de contribuição (de 1%, 2% ou 3%) para o Seguro-Acidente do Trabalho (SAT) por parte das empresas que recolhem contribuições sociais destinadas ao Sistema de Seguridade Social (SSS).
De acordo com o artigo 10 da Lei nº 10.666/2003, “a alíquota de contribuição de 1%, 2% ou 3%, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até 50%, ou aumentada, em até 100%, conforme dispuser o regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de frequência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social”.
Já o Decreto nº 6.957/09 criou o índice denominado Fator Acidentário de Prevenção (FAP), conforme instruções constantes de resolução do Conselho Nacional da Previdência Social. Na ação, a Aberc questiona a legalidade da aplicação deste índice, alegando que “seu processo de criação” afronta princípios do Sistema Tributário Nacional (STN), o que imputaria ao FAP vício insuperável de inconstitucionalidade. “Tanto o artigo 10 da Lei n° 10.666/03, quanto o regulamento do Poder Executivo – Decreto n° 3.048/99, alterado pelo Decreto n° 6.957/09 – que pretendia regulamentá-la, são inconstitucionais, vez que contrários aos princípios constitucionais da legalidade, da isonomia e da irretroatividade”, afirma a associação.
De acordo com a Aberc, a aplicação indevida do índice de majoração ao SAT vem gerando prejuízos consideráveis às suas empresas filiadas. “Ainda que pudéssemos admitir a modulação das alíquotas através dos critérios eleitos pelo método (índices de gravidade, frequência e custo), o artigo 10 da Lei nº 10.666/03 impôs limites materiais e formais à regulamentação, restringindo desde a identificação dos dados interessantes, até as variáveis importantes ao cálculo do desempenho de cada contribuinte perante os benefícios decorrentes dos riscos ambientais do trabalho”, argumenta a Aberc.
Para a associação, ao estabelecer os critérios para a modulação da alíquota do tributo, a Lei nº 10.666/2003 afrontou o princípio da legalidade. “Isso porque delega ao Executivo a determinação de um dos critérios componentes do núcleo mínimo necessário à criação da norma geral e abstrata instituidora do tributo, qual seja, a fixação da alíquota”, explicam os advogados da associação. “No caso ora discutido, deveria a Lei nº 10.666/03 ter estabelecido pormenorizadamente qual seria a fórmula de cálculo do FAP, o que significa estabelecer a alíquota do SAT. Furtando-se a este dever, citada lei federal delega competência tributária ao chefe do executivo, que à margem da legalidade passou a ter liberdade ilimitada para manipulação de fórmula matemática visando estipulação de alíquota de tributo, atividade própria do legislativo”, enfatiza a entidade.
O relator da ADI é o ministro Dias Tofofli.

Processos relacionados

ADI 4660


Fonte: STF

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Parecer Prof. Dr. Luis Roberto Barroso sobre art. 93 da CF/88


Dilma errou ao não nomear o mais votado para o TRF-2

É obrigatória a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento. É o que diz o parecer assinado por Luís Roberto Barroso, doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde também é professor Titular de Direito Constitucional dos cursos de graduação e pós-graduação, e Ana Paula de Barcellos, sócia do Luís Roberto Barroso & Associados.
A presidente Dilma Rousseff deixou de nomear desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região o juiz que figurou por três vezes consecutivas na lista tríplice elaborada pela corte. Com a decisão de Dilma, o juiz Aluisio Gonçalves de Castro Mendes ficou impedido de tomar posse no cargo, mesmo tendo conquistado, por três vezes consecutivas, o primeiro lugar na lista tríplice enviada ao Executivo. Ele foi o único a ser citado as três vezes. Na época, a presidente escolheu o juiz federal Marcelo Pereira da Silva.
A rejeição do nome do candidato levou três entidades de classe — Associação dos Magistrados Brasileiros, Associação dos Juízes Federais do Brasil e Associação dos Juízes Federais da 1ª Região — a entrarem com um Mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal. A liminar, concedida pelo relator do processo, ministro Ricardo Lewandowski, impediu a posse de Pereira da Silva.
De acordo com as entidades, a Constituição Federal determina a automática nomeação daquele que aparecer três vezes na lista tríplice preparada pelo respectivo tribunal. É essa a tese, inclusive, defendida por Barroso, que deu seu parecer no caso a pedido da Ajufe.
A questão da promoção da magistratura é tratada pelo artigo 93, inciso II, aliena “a”, da Constituição. Foi esse dispositivo que, na visão de Barroso, a presidente violou. O texto estabelece que a promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento, atende a algumas normas. Uma delas é a de que é obrigatória a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento.
Intenção do constituinte
De acordo com o parecer, o dispositivo, mesmo com a Emenda Constitucional 45, de 2004, continua valendo: aplica-se ao concurso para acesso dos juízes de carreira aos tribunais de segunda grau e, "de forma mais particular, ao concurso para acesso dos juízes federais aos Tribunais Regionais Federais".
A presidente, ao contrário, alegou que as alíneas não se aplicavam às promoções de juízes que ascendem aos tribunais, mas tão somente às promoções entre cargos públicos no Poder Judiciário de primeiro grau. Para o Executivo, a Emenda Constitucional retirou a expressão “de acordo com o inciso II”, do inciso III, tornando a regra diferente.
“Além de a ausência de menção ao inciso II não ser suficiente para se concluir pela sua não aplicação à hipótese do inciso III, a verdade é que a EC 45, de 2004, sequer pretendeu produzir esse resultado com a alteração”, explicam os advogados.
Refutando a tese, o documento diz ainda que “faria muito pouco sentido que o constituinte tivesse disposto sobre os critérios do merecimento e da antiguidade e, nada obstante, houvesse decidido por aplicar as normas que regulem esses critérios a apenas algumas promoções, e não a outras”. E mais: “sem uma exceção específica, nada justificaria um tratamento diferenciado na hipótese”.
Além desse ponto, a dupla declara que o artigo é levado ao pé da letra apenas em partes por Dilma: “Note-se que é o referido dispositivo quem determina a elaboração da lista tríplice no concurso de promoção de magistrados. Assim, a norma não foi aplicada para fim de elaboração da lista, mas afastada no que diz respeito à regra de promoção obrigatória do magistrado que figura por três vezes consecutiva bem lista de merecimento”.
O parecer fala sobre a vontade do constituinte em prestigiar a qualidade da prestação jurisdicional. O raciocínio de Dilma, aponta, caso “levado ao extremo”, poderia tornar esse esforço inútil. “Seria irrazoável imaginar que tais critérios de mérito seriam considerados para a promoção dos magistrados de entrância para entrância, mas seriam irrelevantes na promoção dos magistrados para os tribunais”.

Clique aqui para ler o parecer.



O direito à saúde e os planos de saúde

A Constituição Federal de 1988 inovou ao explicitar a preocupação com a dignidade da pessoa humana, elencando-a como princípio fundamental.
Assim, além de garantia, incluiu a promoção de meios para que este e demais direitos fundamentais fossem devidamente observados e respeitados pelo Estado, bem como assegurados mediante regulamentações específicas, prevalecendo, inclusive, seu poder coercitivo. Tal idéia se confirma ao longo de seus artigos e sua promulgação fez referência expressa à saúde como parte integrante do interesse público e como princípio-garantia em benefício do cidadão.
Decorre do arcabouço principiológico e programático, além do enunciado constitucional, as muitas normas regulamentadoras que direcionam a sistematização da saúde, profissionais correlatos, incluindo toda e qualquer participação através da Administração Pública, bem como a parceria com setores privados.
A flexibilização do sistema universalista, este fundado no atendimento das necessidades, ou seja, um sistema único e para a necessidade de transformação das ações de saúde em bens sociais gratuitos sob responsabilidade do Estado, a partir de uma base eficaz de financiamento, possibilitou a organização da iniciativa privada sob as formas básicas de seguros e medicina pré-paga e suas derivações.
Este sistema de proteção social, em sua concepção originária, tornou-se indispensável ao sadio desenvolvimento, bio-psico-social da população, em perfeita consonância com os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
No entanto, à pressão dos custos, resultante de diversos fatores, entre os quais o envelhecimento das populações, o incremento incessante de tecnologias custosas e as alterações epidemiológicas com o aparecimento de novas patologias e agravos da saúde, os sistemas universalistas, fundados no atendimento das necessidades, passam por intensas transformações.
Neste contexto, abre-se espaço para o exercício da livre iniciativa, ou seja, a atuação do setor privado baseado pela própria Constituição Federal de 1988, que seu artigo 199 dispõe: "(...) o qual delega às instituições privadas a possibilidade de assistência à saúde".
A insegurança e a precariedade dos serviços públicos de saúde levaram os cidadãos a se vincularem, em curto espaço de tempo, ao modelo de prestação de serviço em que os planos de saúde atuam como "intermediadores", ou seja, atravessam a relação médico-paciente, sendo responsável pelo repasse dos honorários ao profissional, mediante o pagamento mensal realizado pelo usuário à operadora do plano. Certo é que há garantia constitucional à participação do setor privado na saúde, desde que haja respeito a este direito e ao interesse da coletividade.
Uma vez que a saúde abrange um conceito mais amplo do que apenas ações curativas, todo e qualquer intuito de "atendê-la" pretenderá não apenas seu restabelecimento, mas sua promoção por meio da atuação preventiva, concretizando-se com uma sadia e digna qualidade de vida, efetivada a partir da afirmação diária e contínua da cidadania plena.
Dados atuais do Conselho Federal de Medicina informam que no Brasil há 347 mil médicos em atividade, cadastrados no mesmo conselho e 1044 operadoras de planos de saúde médico-hospitalares, que movimentaram R$ 64,2 bilhões em 2009. Projeções indicam que em 2010 este montante alcançou R$ 70 bilhões[1].
O cidadão, titular do direito constitucional à saúde foi, ao longo dos anos, compelido a ter assegurado tal direito, mediante pagamento a uma operadora de saúde titular do direito à livre iniciativa.
Todavia, ainda que sob a permissão estatal, fato é que os cidadãos, ressalta-se, consumidores nesta relação de prestação de serviços, permanecem em terreno incerto, vez que a insatisfação dos profissionais credenciados põe em xeque a qualidade do atendimento.
Cita-se recente comparação da própria ANS[2], demonstrando valores pagos a diversos profissionais liberais, em que uma consulta médica custa em média R$ 38,93 e, por exemplo, um pintor cobra R$ 80,00 para pintura de 10m2 de uma parede.
Cabe então a seguinte reflexão: como é possível garantir à saúde, se o valor pago ao profissional como honorário não condiz com o seu direito fundamental à dignidade da pessoa humana?
Ademais, as operadoras de planos de saúde, não satisfeitas com os lucros obtidos, exercem constante interferência na relação médico-paciente, na tentativa de limitar o número de exames a serem solicitados e procedimentos prescritos, inclusive sugerindo que o montante excedente seja descontado de seus honorários.
Significa dizer que o Estado concede aos planos a "administração" da saúde da população e o profissional divide com o usuário esses custos. A ANS, através da Súmula normativa nº16, pretende aumentar o rigor no combate à interferência e flagrante constrangimento imposto aos profissionais.
Mais recentemente, no último dia 07 de abril, presenciou-se a paralisação dos profissionais médicos no tocante aos atendimentos eletivos para usuários de planos de saúde, na tentativa de chamar à atenção para os valores pagos como honorários, sem reajuste nos últimos anos, embora as mensalidades pagas pelos usuários tenham acompanhado os reajustes concedidos pelo Estado.
Infelizmente a Secretaria de Direito Econômico (SDE), órgão do Ministério da Justiça rechaçou o movimento, também ofuscado pelo desastre de Realengo, não sendo amplamente divulgado pela mídia como deveria, dada à relevância do debate.
Em tempo, o Conselho Federal de Medicina obteve liminar suspendendo a medida da SDE, que proibia as entidades médicas organizar tais movimentos de paralisação. A antecipação de tutela foi confirmada em 19 de maio.
A participação popular no intuito de favorecer a clareza de contratos, a exigência por serviços de qualidade revelam sua fundamental importância, frente a um Estado ainda letárgico apesar de dispor de instrumentos legais suficientes para a garantia dos direitos fundamentais aos seus cidadãos.

[1] Fonte: APM/Datafolha-Pesquisa Nacional
[2] Valor médio nacional de consulta médica de plano de saúde individual - Fonte: ANS/2010. Dados das entidades médicas mostram valores ainda menores, abaixo de R$ 25,00 por consulta.
OBS: Valores médios de mão-de-obra de outros serviços. Fonte: Datafolha/Datacasa - Pesquisa de preços realizada com base em informações cedidas por agências especializadas em serviços domésticos e anúncios dos principais jornais na cidade de São Paulo.

Arianne Gaio é bacharel em Direito e membro do projeto de pesquisa "Livre iniciativa e dignidade da pessoa humana - ano III", do Centro Universitário de Curitiba - UniCuritiba. Graduada em .Enfermagem e Obstetrícia (PUC-PR).

Disponível em: http://www.parana-online.com.br/colunistas/348/87687/. Acesso em: 21 set. 2011.

A possibilidade real de aplicação imediata de um direito fundamental

A decisão abaixo transcrita é um exemplo de (boa) aplicação da Constituição:
"CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA. PLENA LEGITIMIDADE DESSA DETERMINAÇÃO JUDICIAL. INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). AGRAVO IMPROVIDO.
- A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV).
- Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças até 5 (cinco) anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.
- A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.
- Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
- Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina."
(STF - ARE 639337/SP - Rel. Min. Celso de Mello - DJe de 29.6.11. Destaques originais)
Do voto do eminente Min. Relator Celso de Mello, extraem-se os seguintes fundamentos:
"O recurso extraordinário a que se refere o presente agravo foi interposto contra acórdão, que, proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, está assim ementado (fls. 1.697):
"APELAÇÃO - Reexame Necessário - Ação Civil Pública - Sentença que obriga o Município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas de sua residência - Cabimento - Direito Fundamental, líquido e certo - Aplicação dos artigos 208 da Constituição da República e 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente - Inocorrência de violação aos princípios constitucionais da Separação e Independência dos Poderes da República - Necessidade de harmonia como o princípio da legalidade e da inafastabilidade do controle judicial (arts. 5º, XXXV, e 37 da Constituição Federal) - Princípio da Isonomia que impõe o respeito ao direito de todas as crianças - Normas constitucionais de eficácia plena - Direito universal a ser assegurado a qualquer criança que dele necessite - Obrigação do Município reconhecida no artigo 211 da Constituição Federal - Prova suficiente a autorizar o acolhimento do pedido - Multa cabível e proporcional - Não provimento do recurso e do reexame necessário." (grifei)
A parte ora agravante sustenta que o acórdão impugnado em sede recursal extraordinária teria transgredido preceitos inscritos na Constituição da República. O exame desta causa, no entanto, considerada a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em análise (AI 474.444-AgR/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 410.715- -AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RE 436.996-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), convence-me da inteira correção dos fundamentos que apóiam e dão consistência ao acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à educação - que representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV, e 227, "caput") - qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num "facere", pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento, em creche e pré-escola, "às crianças até 5 (cinco) anos de idade" (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC nº 53/2006). O eminente e saudoso PINTO FERREIRA ("Educação e Constituinte", "in" Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173), ao analisar esse tema, expende, sobre ele, magistério irrepreensível: "O Direito à educação surgiu recentemente nos textos constitucionais. Os títulos sobre ordem econômica e social, educação e cultura revelam a tendência das Constituições em favor de um Estado social. Esta clara opção constitucional faz deste ordenamento econômico e cultural um dos mais importantes títulos das novas Constituições, assinalando o advento de um novo modelo de Estado, tendo como valor-fim a justiça social e a cultura, numa democracia pluralista exigida pela sociedade de massas do século XX." (grifei) Para CELSO LAFER ("A Reconstrução dos Direitos Humanos", p. 127 e 130/131, 1988, Companhia de Letras), que também exterioriza a sua preocupação acadêmica sobre o tema, o direito à educação - que se mostra redutível à noção dos direitos de segunda geração - exprime, de um lado, no plano do sistema jurídico-normativo, a exigência de solidariedade social, e pressupõe, de outro, a asserção de que a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento político, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as dimensões em que estas se projetem: "(...) É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo ‘welfare state', são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos - como o direito ao trabalho, à saúde, à educação - têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade. Daí a complementaridade, na perspectiva ‘ex parte populi', entre os direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito, denominados direitos econômico-sociais e culturais, podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo (...)." (grifei) O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à educação infantil - ainda mais se considerado em face do dever que incumbe, ao Poder Público, de torná-lo real, mediante concreta efetivação da garantia de atendimento, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos de idade (CF, art. 208, IV) - não podem ser menosprezados pelo Estado, "obrigado a proporcionar a concretização da educação infantil em sua área de competência" (WILSON DONIZETI LIBERATI, "Conteúdo Material do Direito à Educação Escolar", "in" "Direito à Educação: Uma Questão de Justiça", p. 236/238, item n. 3.5, 2004, Malheiros), sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário. Cabe referir, neste ponto, a observação de PINTO FERREIRA ("Educação e Constituinte" "in" Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173), quando adverte - considerada a ilusão que o caráter meramente retórico das proclamações constitucionais muitas vezes encerra - sobre a necessidade de se conferir efetiva concretização a esse direito essencial, cuja eficácia não pode ser comprometida pela inação do Poder Público: "O direito à educação necessita ter eficácia. Sendo considerado como um direito público subjetivo do particular, ele consiste na faculdade que tem o particular de exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações. Para que fosse cumprido o direito à educação, seria necessário que ele fosse dotado de eficácia e acionabilidade (...)." (grifei) O objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de educação infantil, especialmente se reconhecido que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis - notadamente aquelas que visem a fazer cessar, em favor da infância carente, a injusta situação de exclusão social e de desigual acesso às oportunidades de atendimento em creche e pré-escola -, traduz meta cuja não-realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público.
(...)
É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 75/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal: (...)
É certo - tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) - que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Impende assinalar, contudo, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, "A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais", p. 245/246, 2002, Renovar), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político- -administrativa - o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004). Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta observação de REGINA MARIA FONSECA MUNIZ ("O Direito à Educação", p. 92, item n. 3, 2002, Renovar), cuja abordagem do tema - após qualificar a educação como um dos direitos fundamentais da pessoa humana - põe em destaque a imprescindibilidade de sua implementação, em ordem a promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida de todos, notadamente das classes menos favorecidas, assinalando, com particular ênfase, a propósito de obstáculos governamentais que possam ser eventualmente opostos ao adimplemento dessa obrigação constitucional, que "o Estado não pode se furtar de tal dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação" (grifei). Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a educação infantil - que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 208, IV) - tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município (CF, art. 211, § 2º), disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial, como adverte, em ponderadas reflexões, a ilustre magistrada MARIA CRISTINA DE BRITO LIMA, em obra monográfica dedicada ao tema ora em exame ("A Educação como Direito Fundamental", 2003, Lumen Juris). (...)
Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que os Municípios - que atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Constituição, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se de atendimento das crianças em creche e na pré-escola (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
(...)
Isso significa, portanto, considerada a indiscutível primazia reconhecida aos direitos da criança e do adolescente (ANA MARIA MOREIRA MARCHESAN, "O princípio da prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente e a discricionariedade administrativa", "in" RT 749/82-103), que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a incompetência na adequada implementação da programação orçamentária em tema de educação pública, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a educação infantil, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais estabelecidas em favor das pessoas carentes não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, notadamente pelo Município (CF, art. 211, § 2º), da norma inscrita no art. 208, IV, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental da cidadania e que é, no contexto que ora se examina, o direito à educação, cuja amplitude conceitual abrange, na globalidade de seu alcance, o fornecimento de creches públicas e de ensino pré-primário "às crianças até 5 (cinco) anos de idade" (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC nº 53/2006). Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas e reafirmando a correta determinação emanada do Poder Judiciário paulista, que impôs, ao Município de São Paulo, em face da obrigação estatal de respeitar os direitos das crianças, o dever de viabilizar, em favor destas, a matrícula em unidades de educação infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, sob pena de multa diária por criança não atendida, conheço do presente agravo, para negar seguimento ao recurso extraordinário, por manifestamente inadmissível (CPC, art. 544, § 4º, II, "b", na redação dada pela Lei nº 12.322/2010), mantendo, por seus próprios fundamentos, o acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Publique-se.
Brasília, 21 de junho de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator" (destacamos)

N o t a s

Pouco há que se dizer sobre a grande importância do acórdão em questão. Ele representa a exegese ideal da letra da Lei das Leis, com a diferença de que, neste caso, o ideal se tornou real. A Corte Constitucional, cumprindo sua missão de bem defender a Carta Republicana de 1988, entendeu, em suma, que, nela, contêm-se direitos fundamentais os quais, apesar de exigirem grande soma em recursos públicos e humanos para serem aplicados, não podem deixar de sê-lo, sob pena de naufrágio do sistema jurídico que rege a sociedade brasileira.
Na espécie, tudo aponta para a gravidade do tema: o direito, cujos titulares são crianças, de receber, do Poder Público, o ensino que a Constituição diz ser delas gratuitamente. O Judiciário paulista condenou o município a matricular crianças de até 5 (cinco) anos de idade em unidades de ensino próximas de suas residências ou das de seus responsáveis legais, sob pena de multa diária por menor não atendido.
A Procuradoria do Estado recorreu até o STF. Mas a pretensão foi julgada improcedente, dentre outras razões, porque os municípios "não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Constituição", sem que haja um "motivo justo objetivamente aferível." Assim, e enfrentando a teoria da "reserva do possível", consignou-se que "a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a incompetência na adequada implementação da programação orçamentária em tema de educação pública, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a educação infantil, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais estabelecidas em favor das pessoas carentes" não configuram, de modo algum, tal motivo justo. Nada mais a acrescentar.
Mas a fundamentação não deixa de levantar algumas dúvidas, especificamente em relação a situações de descaso do Estado em relação a outros direitos fundamentais de igual relevância social. A segurança pública, p.ex.: crimes cometidos no interior de um ônibus de linha, em praças públicas e em demais situações nas quais a vítima deveria estar protegida pelo Estado. Não seriam hipóteses de imposição de reforço de policiamento? Ou, quando há prejuízo ao cidadão, não seria o caso de indenização?
Na mesma linha, cita-se a dignidade da pessoa humana, afrontada diariamente no setor penitenciário, em que milhares de pessoas vivem em condições desumanas: não seria, também, o caso de medida enérgica e imediata do Judiciário? E os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, art. 3º e incisos), como sejam, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e da marginalização? São cumpridos, na prática?
É fácil lembrar de casos concretos em que todas essas garantias indisponíveis da humanidade foram - e continuam sendo - flagrantemente contrariadas. No entanto, muitas delas não tiveram, do Judiciário, o mesmo tratamento que o direito à educação recebeu, na decisão acima, por parte do STF. Longe de significar algum tipo de discriminação entre as garantias do cidadão, o acórdão deve ser visto como um sinal de que, quando um direito constitucional fundamental é desafiado pelo próprio poder público, o dever cívico da parte lesada é procurar fazer com a Suprema Corte sobre isso se manifeste. E, a prevalecer a orientação do Min. Celso de Mello, a "reserva do possível" não será um problema.

Disponível em: <http://www.parana-online.com.br/colunistas/69/88087/>. Acesso em: 21 set. 2011.

STF já pode julgar cotas para negros nas universidades

O Supremo Tribunal Federal (STF) já está pronto para julgar as ações que contestam a legalidade das cotas para negros nas universidades brasileiras.
O ministro Ricardo Lewandowski, relator da ação levada ao STF pelo Democratas, terminou nesta semana o seu voto sobre o assunto. Agora, basta que o presidente do tribunal, Cesar Peluso, inclua o assunto em pauta.
Não há data prevista para que isso aconteça, porém. Lewandowski, claro, também não antecipa o seu voto.
Há outra ação correndo no Supremo sobre o mesmo assunto, que também é relatada pelo mesmo ministro. Nesse caso, o voto está pronto desde maio deste ano.
A contestação às cotas em geral se baseia no fato de que a reserva de vagas para um grupo seria uma afronta à igualdade garantida pela Constituição.
Os defensores das cotas afirmam que elas reparam um dano histórico e promovem a inclusão social, dando oportunidades a quem antes não teria.
O tema é polêmico e já vem se arrastando há algum tempo. Neste mês, comemoraram-se os dez anos da criação do primeiro sistema de cotas para afrodescentes numa universidade pública brasileira, a UERJ.
No Paraná, a UFPR tem cotas desde 2005.


Rigor da Lei Seca está sob ameaça

Discussão sobre intenção de matar em casos de acidente com motoristas embriagados ganha decisão que poderá guiar julgamentos futuros.

A Lei Seca foi promulgada em 2008 com a promessa de ser rigorosa na punição de motoristas que dirigem embriagados. Mas essa tentativa de reduzir as mortes no trânsito brasileiro – quase 40 mil naquele ano – tem tido o rigor atenuado pela Justiça.
Além da recusa em fazer o bafômetro, garantida por lei, no último dia 9 um revés inédito contra o mecanismo veio da 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), composta por quatro ministros: eles decidiram que um motorista bêbado da cidade de Pradópolis, no interior de São Paulo, não pode ser julgado por homicídio com dolo eventual (quando a pessoa assume o risco de matar) e determinou que o crime seja julgado como homicídio culposo (sem intenção). A interpretação, não unânime, muda o entendimento até agora seguido por juízes e desembargadores na aplicação de punição a motoristas embriagados.
A decisão vale para um caso específico e pode ser alterada em um eventual julgamento do pleno do STF, com nove ministros, mas pode influenciar decisões judiciais em casos semelhantes, como o do ex-deputado Carli Filho, que em um acidente de carro causou a morte de Gilmar Yared e Carlos Murilo de Almeida, em 2009.

Leia na íntegra aqui.


domingo, 11 de setembro de 2011

Direitos constitucionais precisam de legitimação

Controle de Políticas Públicas na Constituição Federal tem por objetivo possibilitar a reflexão crítica sobre a realidade que nos cerca das questões fundamentais do Direito Constitucional. Particularmente na seara dos Direitos Sociais com os seus novos caminhos, na emissão de algumas considerações sobre os debates, aqui em estudo, refletidos de uma decisão soberana do Poder Judiciário.
A construção do tema, acima focalizado, vem de uma revelação das idéias e dos valores que o autor identificou em sua pesquisa com base em significativo decisum que não poderia deixar de conter, de início, a expressão do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), quando afirma:
“Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir; e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É, pois, esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão.
As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chamam leis da natureza.”
É necessário, pois, a propósito disso, lembrar o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, que foi recepcionado pelo artigo 19 da Constituição Francesa, de 4 de novembro de 1848.
Vejamos, então, o artigo 16 da sobredita Declaração, in expressis verbis:
Artigo 16 - Toda a sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada e a separação de poderes determinada, não tem Constituição (Toute societé dans laquelle la garantie des droits n’est pas assuré, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a poit de constitution).
Como bem anotado e, principalmente, pelos pontos lógico-jurídicos do tema a ser abordado, tem-se como certo, que os Direitos Sociais são direitos fundamentais do homem, liberdades positivas de observância obrigatória em toda a sociedade democrática de direito. E essa verdade jamais murchará.
A Lei 8.009/1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, nos dispositivos do artigo 1º, caput, revela de forma inquestionável o direito constitucional à moradia, que é consagrado nas normas do artigo 6º, da Carta Política de 1988, este que Paulo Bonavides entende deveria ter sido protegido pelo constituinte pátrio sob o manto das cláusulas pétreas.
Bem, como anunciado acima, atentemos ao texto do artigo 1º, caput, da Lei 8.009/1990, verbo ad verbum:
Art. O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
A propósito, a matéria pertinente à aplicação da Lei 8.009/1990, se encontra guarnecida sob os bons auspícios da Súmula 205 do Superior Tribunal de Justiça.
In casu, buscamos apenas para discussão, uma vertente da norma que se reporta ao direito constitucional à moradia relativa à possível ocorrência de impenhorabilidade de bem imóvel de pessoa solteira.
E, nesse diapasão, surge a figura do intérprete que, sempre inquieto, transborda o sentimento de jurista que é, nos casos isolados, que escapam da genialidade do legislador.
Em recente julgado, o STJ, para não esmaecer frente à súplica do recorrente solteiro, no que pertine ao enfrentamento do caso concreto relativo à norma sub examine resolveu, corajosamente:
DIREITO À MORADIA. BEM DE FAMÍLIA. SOLTEIRO. IMPENHORABILIDADE. A interpretação teleológica do art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário. (STJ-Corte Especial, RSTJ 173/40, RT 818/158).
Como se pode observar o STJ, em momento de extrema lucidez, o que lhe é peculiar, leciona que a norma em destaque merece interpretação ampliativa, alcançando em cheio a frase inicial das garantias fundamentais da Carta Magna: todos são iguais perante a lei.
3. Identificação do problema a ser solucionado
Em questionamento puramente acadêmico, que se direciona, claro, para o jurídico, ressai a indagação sobre o fato abordado da impenhorabilidade do imóvel em que reside a pessoa solteira.
A bem da verdade, o direito à moradia amplamente consagrado e protegido pelos tribunais superiores, como já demonstrado quanto ao STJ, no sentir do intérprete, envolve-se de uma textura muito forte, no universo da acepção jurídica, enquanto a entidade familiar, como um todo. Ou seja, em seus mais variados sentidos ou formas, houver se apresentado na sociedade e por ela reconhecida, como tal, na plenitude de sua definição, que remonta a épocas bíblicas.
Concordamos, plenamente, que a Lei 8.009/1990 foi concebida para garantir a dignidade e funcionalidade do lar. Não foi propósito do legislador permitir que o pródigo e o devedor contumaz se locupletem, tripudiando sobre seus credores. Na interpretação da Lei 8.009/1990, não se pode perder de vista seu fim social. (STJ-Corte Especial, REsp 109.351-RS, rel min. Gomes de Barros).
Consagra-se, portanto, nos itens acima expendidos, o direito constitucional à moradia. A matéria surge com tanta proficiência no campo jurídico-constitucional que é agasalhada no direito pátrio como norma de ordem pública, valendo dizer que a renúncia ao benefício da impenhorabilidade do bem de família em cláusula contratual não tem qualquer validade jurígena: É nula de pleno jure.
Na busca incessante de argumentos fortes para a pesquisa, vale ressaltar, com bastante clareza que, nos dispositivos contidos no artigo 6º da Lex Maxima, ainda em plena vigência, com as mais variadas interpretações, as garantias fundamentais, ali elencadas, devem ser procuradas, insistentemente, nos clássicos que desbordam para o tema, com a preocupação singela do encontro do pouco com o conhecimento.
A escolha do tema em destaque promana de constante aproximação do hermeneuta a todos os direitos sociais escritos na Lei Maior de 1988 que, segundo alguns autores, têm no seu enunciado caráter extremamente exemplificativo.
Em suma, o resultado do trabalho indica que, desde a Constituição Federal de 1934, os direitos sociais são consagrados de forma veemente, contudo somente com a Emenda Constitucional 26/2000 restou acrescentado o direito constitucional à moradia no capítulo dos Direitos Sociais, sempre no artigo 6º da C.F.
Em síntese, no sentido histórico, é o movimento do direito constitucional em direção ao direito processual. O escritor espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), em reflexos de intensa sabedoria nos adverte: “entre o querer ser e o crer que já se é, vai a distância entre o sublime e o ridículo.”
Ai está posta, ao que em boa hora anotei, a matéria retirada de fragmentos de Controle de Políticas Públicas na Constituição Federal. Em um dos seus momentos de reflexão sobre os princípios atinentes ao convívio social e fonte das doutrinas constitucionais liberais Montesquieu felizmente advertiu.” indo Espírito das Leis”, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962, v. 1, p. 181”.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esse três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências individuais.
Em síntese, na lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, diríamos que o crescimento da forma típica do Estado Social no seio da forma típica do Estado de Direito fez surgir, ao lado da interpretação de bloqueio, o que se chamou de interpretação de legitimação.
Assim, desse trabalho há de se vislumbrar que sirva de vertente de resposta à consulta e ofereça aproveitáveis notas sobre o Direito Constitucional. Busca-se então na importância do tema o real sentido dos seus itens, para que não venha a fluir e precipitar-se e deixar de ser, antes de vir a ser, como diria o gênio de Sêneca.


by Megbel Abdalla Ribeiro Ferreira, advogado.


Ação do MPF questiona no Supremo regime de contratações públicas para obras da Copa

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4655) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a Lei 12.462/11, que cria o RDC (Regime Diferenciado de Contratações Públicas), aplicável a licitações e contratos de obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas 2016.
Gurgel apresenta dois argumentos ao pedir a concessão de liminar para suspender a eficácia da norma até o julgamento definitivo da ação. Segundo ele, se as licitações e contratações das obras forem realizadas na forma regulada pela lei, “haverá comprometimento ao patrimônio público”. O procurador-geral acrescenta que há “necessidade de se garantir aos gestores segurança para que deem início, de fato, às licitações e consequentes obras, serviços e atividades voltadas à Copa do Mundo Fifa 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016”.
A ADI do procurador-geral foi distribuída por prevenção para o ministro Luiz Fux porque ele recebeu a primeira ação ajuizada no Supremo contra o RDC, de autoria do PSDB, DEM e PPS.
Inconstitucionalidade formal
O procurador-geral informa que a norma questionada resultou da conversão em lei da Medida Provisória 527/11, editada originalmente para modificar a estrutura organizacional e as atribuições dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. No curso da tramitação da MP na Câmara, o deputado José Guimarães (PT-CE) incluiu os dispositivos sobre o regime diferenciado de contratação.
Gurgel afirma que a inclusão de matéria estranha à tratada na medida provisória viola o devido processo legislativo e o princípio da separação dos Poderes, já que as MPs são de iniciativa exclusiva do presidente da República.
“Portanto, como a Lei 12.462/11, quanto aos dispositivos impugnados, é fruto de emenda parlamentar que introduz elementos substancialmente novos sem qualquer pertinência temática com aqueles tratados na medida provisória apresentada pela presidente da República, sua inconstitucionalidade formal deve ser reconhecida”, afirma Gurgel.
Vícios materiais
Ao longo da ADI, que tem 35 laudas, o procurador-geral afirma que os dispositivos da Lei 12.462/11 que tratam do RDC são inconstitucionais porque ferem os balizamentos que necessariamente devem ser observados pelas normas infraconstitucionais que regulam as licitações e os contratos administrativos no país.
Gurgel lembra que, de acordo com o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes.
Segundo ele, essa regra não é respeitada na Lei 12.462/11 porque a norma não fixa parâmetros mínimos para identificar as obras, os serviços e as compras que deverão ser realizadas por meio do RDC. “Não há, reitere-se, qualquer parâmetro legal sobre o que seja uma licitação ou contratação necessária aos eventos previstos na lei, outorgando-se desproporcional poder de decisão ao Executivo”, conclui.
Segundo Gurgel, a experiência mostra o risco que essa delegação representa para o patrimônio público. Ele lembra que, “por ocasião dos Jogos Panamericanos de 2007, a União, estado e município do Rio de Janeiro não conseguiram organizar-se e identificar as obras e serviços que deveriam ser realizados”. Ele afirma que “essa foi uma das razões para que o orçamento inicial do evento, de 300 milhões de reais, tenha sido absurdamente ultrapassado, com um gasto final na ordem de 3 bilhões de reais”.
Ele acrescenta que “já se anunciam” deficiências graves no planejamento e na organização do Poder Executivo para a realização da Copa do Mundo de 2014. “A transferência, ao Executivo, do regime jurídico de licitação pública, sem quaisquer critérios preordenados na lei, além da ofensa ao artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, conspira contra os princípios da impessoalidade, moralidade, probidade e eficiência administrativa".
Projeto básico
O procurador-geral questiona os dispositivos da lei que conferem à Administração o dever de adoção preferencial do regime de “contratação integrada” e “empreitada integral” de obras e serviços de engenharia, o que implica uma única licitação para projeto básico, projeto executivo e execução de obras e serviços. Nessa modalidade de contratação, não é preciso definir previamente o objeto das obras e serviços.
“A definição prévia do objeto (da obra ou serviço) é um imperativo decorrente do princípio da isonomia dos concorrentes, pois é a partir dele que as diversas propostas podem ser objetivamente comparadas”, explica. Gurgel ressalta que a Lei de Licitações (Lei 8.666/93) define exaustivamente o que vem a ser o objeto da licitação de obras e serviços, que na norma é chamado “projeto básico”.
Por exemplo, a Lei de Licitações determina que o “projeto básico” é o conjunto de elementos necessários e suficientes para caracterizar a obra ou serviço objeto da licitação, elaborado de forma a assegurar a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução.
No caso do RDC, informa Gurgel, “a definição das características e do valor das obras contratadas somente serão aferíveis após assinado o contrato e realizado o projeto básico pela pessoa contratada”.
O procurador-geral identifica ainda um outro desvirtuamento dos propósitos da licitação no modelo adotado pelo RDC: a possibilidade que se concentrem num mesmo contratante o projeto básico e a execução da obra ou do serviço. Gurgel afirma que isso afronta a finalidade do procedimento licitatório, que é a ampla competitividade.
“O procedimento da pré-qualificação permanente, no âmbito do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, está na contramão disso tudo, uma vez que busca a habilitação prévia dos licitantes em fase anterior e distinta da licitação. E ainda permite que interessados não pré-qualificados sejam alijados da licitação”, diz Gurgel.
Ele informa que o Tribunal de Contas da União já constatou que o modelo de pré-qualificação implica inúmeras irregularidades, como direcionamento de certames, conluio entre os participantes e sobrepreços.
Danos ambientais
O procurador-geral afirma também que a lei, na parte que prevê a adoção de medidas mitigadoras e compensatórias para obras ou atividades potencialmente causadoras de danos ambientais ou culturais, não pode ser interpretada no sentido de que sejam dispensadas exigências estabelecidas nas normas que regulam o licenciamento ambiental, especialmente a avaliação sobre a possibilidade de realização da obra ou da atividade.

Processos relacionados

ADI 4655

A ação mais antiga do Supremo

O processo mais antigo à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) já completou 52 anos de tramitação, há cerca de dois meses. Quando foi protocolado, em junho de 1959, o endereço da Corte não era a Praça dos Três Poderes, em Brasília, mas a Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. O atual presidente do Supremo e relator da ação, ministro Cezar Peluso, tinha 16 anos de idade. O ministro mais moço, José Antonio Dias Toffoli, nem sequer havia nascido. Até o nome do País era outro: República dos Estados Unidos do Brasil.
Com 12 volumes e 3 apensos, o processo tem 2.449 páginas - todas amareladas e muitas em processo de desintegração. Várias estão improvisadamente protegidas por sacos plásticos, para não virarem pó. Pelas estimativas dos servidores da Casa, essa é, seguramente, a ação em tramitação no Supremo Tribunal Federal com maior número de ácaros por página.
A ação foi proposta pelo então procurador-geral da República, Carlos Medeiros da Silva, contra o governo do Estado de Mato Grosso, que, naquele tempo, ainda não havia sido dividido. Para colonizar a região, o governo estadual havia doado a seis empresas lotes de terras públicas - hoje localizados em Mato Grosso do Sul -, com áreas superiores a dez mil hectares. O problema é que, pela Constituição de 1946, então em vigor, a doação não poderia ser feita sem prévia autorização do Senado. Como isso não ocorreu, o procurador-geral pediu a nulidade dos contratos. Em sua defesa, o governo mato-grossense alegou que não houve cessão das terras e que as seis empresas, em troca do benefício recebido, se comprometeram a promover assentamentos de famílias de agricultores e pecuaristas e construir estradas, escolas, hospitais, olarias, serrarias e campos de aviação.
Como mostra a excelente reportagem do jornal O Globo que inspirou este editorial, desde sua proposição, o processo já teve nove relatores. O primeiro foi o ministro Cândido Motta Filho, que se aposentou em 1967. O atual relator, ministro Cezar Peluso, assumiu o caso em junho de 2003 e, finalmente, concluiu seu voto e pretende incluí-lo numa das pautas de julgamento deste mês.
A arrastada tramitação do processo se deve aos pedidos de diligências feitos pelos relatores que antecederam Peluso, para que fossem colhidos depoimentos de todas as pessoas que tinham comprado terras na região depois da doação. "Como achar esse povo?", indaga Peluso.
Qualquer que seja a decisão que o Supremo vier a dar a este processo, ela não deverá ter maiores efeitos práticos - e esse é o aspecto mais surrealista do caso. Desde que as seis empresas beneficiadas pelo governo mato-grossense promoveram os primeiros assentamentos de pecuaristas e agricultores na região, há mais de cinco décadas, já foram registradas várias revendas de terrenos por ocupantes de boa-fé - e, mais importante ainda, foram erguidas cidades nas glebas doadas.
Por isso, o resultado do julgamento será inócuo, uma vez que não se pode erradicar do mapa municípios de pequeno e médio portes nascidos de assentamentos irregulares. Como não podem tomar decisões contrárias ao que a Constituição de 46 determinava, os 11 ministros do Supremo serão formalmente obrigados a considerar inconstitucional a doação dos terrenos, feita em meados do século passado. Mas eles sabem que, objetivamente, não há como obrigar a União a despejar os ocupantes daqueles terrenos ocupados indevidamente e indenizar os atuais moradores das áreas que se encontram sub judice.
Além dessa ação, o Supremo terá de julgar várias outras que também tramitam há décadas. Na lista dos processos mais antigos, que foram protocolados entre 1969 e 1981, quatro estavam sob responsabilidade da ministra Ellen Gracie. Como ela se aposentou sem apresentar seu parecer, essas ações serão enviadas a um novo relator. Dependendo do ritmo e da carga de trabalho do STF, esses processos podem bater o recorde de longevidade hoje detido pela ação proposta pelo procurador-geral da República há 52 anos. Esse é um retrato - que não se pode chamar de instantâneo - da Justiça brasileira.

Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-acao-mais-antiga-do-supremo,770962,0.htm. Acesso em: 11 set. 2011.

O efeito expansivo das decisões proferidas em controle difuso de constitucionalidade - Abstrativização

Conforme é cediço, o controle de constitucionalidade se classifica entre difuso e concentrado.
Controle concentrado configura-se pelo exame da constitucionalidade de uma lei a ser realizado, em abstrato, por um único e, normalmente, principal órgão do Poder Judiciário[1]. Quanto ao controle difuso, este se caracteriza por ser desenvolvido por todos os membros do Poder Judiciário, isto é, qualquer juiz pode apreciar a constitucionalidade da lei.
No controle concentrado de constitucionalidade somente as partes que estão legitimadas na Constituição Federal poderão provocar o juízo. Ademais, a decisão terá eficácia erga omnes (contra todos) e produzirá efeitos ex tunc (retroatividade).[2]
Ainda referente ao controle concentrado, vale informar que o STF poderá, por maioria de 2/3 dos seus membros, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, conforme disciplina o artigo 27, da Lei nº 9.868/99.[3]
Já no controle difuso de constitucionalidade, qualquer pessoa pode alegar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, seja como autora ou como ré, em um processo judicial. A arquição será incidenter tantum.
Ocorre, porém, que no controle difuso a norma declarada inconstitucional somente vale para as partes litigantes. Tal validade somente será relacionada aos demais cidadãos, caso o Senado Federal, nos termos do artigo 52, X, da Constituição Federal, suspenda no todo ou em parte a execução da norma declarada inconstitucional.
No caso concreto, a declaração do Supremo Tribunal Federal na via de controle difuso produzirá efeitos ex tunc, encerrando desde o início a relação jurídica. Observe-se, entretanto, que no caso do Senado Federal aceitar a decisão proferida pelo STF, além do efeito erga omnes, haverá eficácia ex nunc (não retroage).
Em que pese o procedimento constitucional anteriormente mencionado, o STF, através do Ministro GILMAR FERREIRA MENDES[4], vem adotando o entendimento de que mesmo no controle difuso de constitucionalidade e sem autorização expressa do Senado Federal, poderá ser admitida eficácia vinculante erga omnes das decisões proferidas pelo Pleno. De acordo com o ministro, isto decorre de uma mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal, e se denomina como a "teoria da transcendência dos motivos determinantes".
Essa idéia também é seguida pelo Ministro do STJ, TEORI ALBINO ZAVASKI, no Recurso Especial 828.106/SP:
"A inconstitucionalidade é vício que acarreta a nulidade ex tunc do ato normativo, que, por isso mesmo, é desprovido de aptidão para incidir eficazmente sobre os fatos jurídicos desde então verificados, situação que não pode deixar de ser considerada. Também não pode ser desconsiderada a decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade. Embora tomada em controle difuso, é decisão de incontestável e natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente, vinculante para os demais tribunais, inclusive o STJ (CPC, art. 481, § único: "Os órgãos fracionários dos tribunais, não se submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do STF sobre a questão"), e como força de inibir a execução de sentenças judiciais contrárias, que se tornam inexigíveis (CPC, art. 741, § único; art. 475 - L, § 1º, redação da Lei 11.232/05...). Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF em ação direta quanto nas proferidas em via recursal. Merece aplausos essa aproximação, cada vez mais evidente, do sistema de controle difuso de constitucionalidade ao do concentrado, que se generaliza em outros países (...)".[5]
As justificativas desse novo posicionamento seriam a força normativa da Constituição, o princípio da supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme buscando a segurança jurídica.
Convém observar, por fim, que a mudança de concepção a respeito da competência do Senado Federal não seria proveniente de uma reforma constitucional. A mudança surgiria através de uma nova interpretação do STF com relação à norma do artigo 52, X, da Constituição da República.

[1] Ação direta de inconstitucionalidade; Ação declaratória de constitucionalidade; e Arguição de descumprimento de preceito fundamental.
[2] Redação dada pela EC nº 45/2004 ao artigo 102, § 2º, da Constituição Federal de 1.988: "As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal".
[3] BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008. Pág. 56.
[4] Informativo 454 do STF. Rcl. 4.335/AC. Voto: Min. Gilmar Ferreira Mendes. "Considerou o relator que, em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82.959/SP".
[5] STJ. Resp. 828.106/SP. Relator: Min. Teori Albino Zavascki. DJ de 15/05/2006.

Gilberto Andreassa Junior é Especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela PUC/PR. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Membro da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Advogado.

Disponível em: http://www.parana-online.com.br/canal/direito-e-justica/news/556609/?noticia=O+EFEITO+EXPANSIVO+DAS+DECISOES+PROFERIDAS+EM+CONTROLE+DIFUSO+DE+CONSTITUCIONALIDADE+ABSTRATIVIZACAO
Acesso em: 11 set. 2011.