domingo, 26 de junho de 2011

O princípio da busca da felicidade e o direito à saúde

Qual o quadro atual de gerenciamento das políticas públicas da saúde no Brasil? Podemos ilustrar com a realidade. Dentro dessa perspectiva, iremos trabalhar o direito à saúde guiado pelo princípio constitucional da busca da felicidade. (Grifo Nosso).
Qual o quadro atual de gerenciamento das políticas públicas da saúde no Brasil? Podemos ilustrar com a realidade. Uma anciã pleiteou fraldas geriátricas porque não conseguia reter sua evacuação [01]. Mães pobres de crianças com síndromes graves tentam alcançar a cura para seus filhos [02]. Um idoso diabético não teve acesso a um remédio que constava expressamente na lista de medicamentos fornecidos pelo SUS no Estado do Rio Grande do Norte [03]. Em Sobral, no Ceará, mesmo após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão do caos nos manicômios do município [04], recém nascidos eram expostos a bactérias mortais [05]. No Piauí, pessoas morriam à espera de atendimento médico junto ao SUS pelo fato de não terem sido cadastradas no Sistema no Estado do Piauí, mas em outros Estados [06].
Eis o quadro. Infelicidade. Dentro dessa perspectiva, iremos trabalhar o direito à saúde guiado pelo princípio constitucional da busca da felicidade. Faremos, ao final, um estudo de caso. Tudo real. Nada de misticismos acadêmicos.

1.A Busca da Felicidade - Raízes

Em 1693, John Locke afirmou que "a mais elevada perfeição da natureza intelectual encontra-se em uma busca cuidadosa e constante da felicidade verdadeira e sólida" [07]. Stephanie Schwartz Driver entende que "em uma ordem social racional, de acordo com a teoria iluminista, o governo existe para proteger o direito do homem de ir em busca da sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar [08]."
O resultado foi a consolidação do seguinte registro histórico: "Consideramos as seguintes verdades como autoevidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade".
O registro acima consta da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Os norte-americanos poderiam afirmar que a felicidade era um direito inalienável, mas não o fizeram. A expressão retrata uma forte marca da personalidade americana. Fala da "busca" da felicidade. Não há promessa de acesso à própria felicidade, mas a garantia de que todos têm o direito de buscá-la.
Esse ideal que a Declaração de Independência fez questão de alimentar no povo norte-americano não se converteu em promessa inconsequente. Pelo contrário. Inúmeras vezes a Suprema Corte daquele país se valeu do princípio da busca da felicidade como reforço argumentativo na fundamentação de posições.
Tenta-se transformar o místico em algo concreto. A felicidade deixa de ser uma aspiração distante e passa a assumir sua posição de realidade.
Felicidade. Todos tem o direito de buscá-la e o Estado deve, além de não atrabalhar esse intento, auxiliar esta busca. (Grifo Nosso). Eis o anúncio do novo horizonte.

2.A Busca da Felicidade – Suprema Corte dos Estados Unidos

O Estado da Louisiana, em 08 de março de 1869, aprovou uma lei que concedia a empresa estatal o direito exclusivo, por 25 anos, de explorar matadouros, postos de desembarques de gado e estaleiros que abrigavam o gado destinado à venda ou abate, dentro das regiões de Orleans, Jefferson, e São Bernardo.
Todo o comércio de gado deveria ser exercido em sistema de monopólio pelo referido matadouro estatal, o qual poderia cobrar taxas para a utilização de cada espaço voltado ao abrigo, abate ou comercialização do gado, incluindo, até mesmo, taxas que incidiam, no abate, sobre as cabeças, patas, sangue e vísceras, com exceção dos suínos.
A questão foi levada à Suprema Corte [09].
A Corte registrou que "quando as colônias se separaram da mãe-pátria, nenhuma outra garantia foi tão reconhecida e devidamente incorporada à Lei Fundamental senão aquela que diz que ‘todos os sujeitos livres no império britânico tinham o direito de exercer a sua felicidade por seguir qualquer um dos comércios estabelecidos no país, sujeitos apenas às restrições que afetava a todos os demais’".
Fez-se menção à Declaração de Independência, segundo a qual são "verdades auto-evidentes que o Criador dotou todos os homens com certos direitos inalienáveis, e que entre estes estão a vida, liberdade e a‘busca da felicidade’" [10].
Doze anos depois a Suprema Corte continuava a discutir a questão dos monopólios de matadouros no Estado da Lousiana. Mais uma vez ela assentou que "o direito de seguir qualquer uma das ocupações comuns da vida é um direito inalienável, que foi formulada, como tal, sob a frase ‘busca da felicidade’ na declaração de independência, que teve início com a proposição fundamental de que ‘todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, à liberdade e à busca da felicidade’" [11].
Em 1886 foi a vez de analisar a constitucionalidade de um decreto municipal que autorizava o Poder Executivo a conceder a exploração de lavanderias públicas baseando-se em critérios de raça entre as pessoas, sem aferir qualquer quesito voltado à competência ou adequação do local escolhido para o exercício da atividade [12].
Segundo a Corte "direitos fundamentais à vida, liberdade e à ‘busca da felicidade’, considerados como um patrimônio individual, estão protegidos pelas máximas do direito constitucional, monumentos que mostram o progresso vitorioso da corrida para garantir aos homens as bênçãos da civilização sob o reinado justo e igual das leis, de modo que, na linguagem do famoso Bill of Rights from Massachusetts, o governo da República "deve ser um governo de leis, e não dos homens" [13].
Em 1923 a Corte se deparou com um caso inusitado. Um professor foi punido por ensinar alemão para uma criança de dez anos em uma escola paroquial. Havia, ao tempo, legislação estadual determinando o ensino exclusivo do inglês e prevendo punição para quem lecionasse outros idiomas.
Segundo a Corte, além de não se poder impor pena que recaisse sobre o corpo, dever-se-ia reafirmar "o direito do indivíduo de contrato, de participação em qualquer das ocupações comuns da vida, de adquirir conhecimentos úteis, de casar, de estabelecer uma casa, de educar os filhos, de adorar a Deus segundo os ditames de sua própria consciência e, geralmente, de gozar desses privilégios reconhecidos como essenciais para o exercício regular de ‘felicidade’ por homens livres" [14].
Em 1925 foi a vez de apreciar a constitucionalidade de uma Lei do Estado de Oregon que obrigava, salvo exceções, que os pais, tutores ou aqueles que detinham controle sobre crianças entre oito e dezesseis anos fossem obrigados a levarem-nas para a escola pública no bairro onde residiam, no ano anterior ao início do ano letivo.
Indagava-se se isso seria uma interferência excessiva na liberdade dos pais e encarregados de orientar a educação dos filhos.
A Corte, relembrando lição do Justice Brandeis, registrou que "a proteção garantida pela 4ª e 5ª emendas é muito mais ampla. Os criadores de nossa Constituição se comprometeram a garantir condições favoráveis ​​à ‘busca da felicidade’"[15].
Por fim, em 1967, foi levado a julgamento lei do Estado da Virgínia que impedia casamentos entre pessoas levando em consideração critérios raciais.
O Chief Justice, Earl Warren, argumentou que "a liberdade para se casar há muito tem sido reconhecido como um dos direitos vital e pessoal essenciais para o exercício regular de ‘felicidade’ por homens livres" [16].
Não há dúvida. Os Estados Unidos abraçam o princípio da busca da felicidade como vetor hermenêutico dotado de máxima efetividade a regular questões envolvendo direitos fundamentais. O princípio da busca da felicidade é mencionado, lá, com a expressão The Pursuit of Happyness.

3.A Busca da Felicidade – Expansão Internacional

A Constituição do Japão, no seu artigo 13, dispõe que todas as pessoas têm direito à busca pela felicidade, desde que isso não interfira no bem-estar público, devendo o Estado, por leis e atos administrativos, empenhar-se na garantia às condições por atingir a felicidade [17].
A Constituição sul coreana, no seu artigo 10, diz que todos têm direito a alcançar a felicidade, atrelando esse direito ao dever do Estado em confirmar e assegurar os direitos humanos dos indivíduos [18].
Ainda dentro dessa perspectiva internacional, o Reino do Butão estabelece, pelo artigo 9º da sua Constituição, a adoção do INFB como indicador social, o Índice Nacional de Felicidade Bruta, que considera indicadores que envolvem bem-estar, cultura, educação, ecologia, padrão de vida e qualidade de governo.
Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o objetivo primordial do Estado Democrático é "a proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam evoluir espiritual e materialmente e atingir a felicidade [19]."
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no § 2º do artigo 5º que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Possibilitou-se, assim, que o nosso país adotasse o princípio da busca da felicidade (The Pursuit of Happyness).
Essa adoção fará toda a diferença para Marcos José.

4.A Busca da Felicidade - Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF), na voz do Ministro Celso de Mello, enxerga o princípio da busca da felicidade (The Pursuit of Happyness)como consectário "do princípio da dignidade da pessoa humana". Isso porque, a Constituição Federal não o trouxe de modo explícito, contudo, dispôs sobre sua fonte primeira, o princípio da dignidade da pessoa humana, alçado, pelo inciso III do art. 1º, como um dos fundamentos da República.
O STF tem posições fundamentadas no princípio da busca da felicidade (The Pursuit of Happyness), mormente quando o tema cuida de direitos fundamentais.
O Ministro Carlos Velloso, em 2005, ponderou no Plenário da Corte: "convém registrar, que uma das razões mais relevantes para a existência do direito está na realização do que foi acentuado na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 1776, o direito do homem de buscar a felicidade. Noutras palavras, o direito não existe como forma de tornar amarga a vida dos seus destinatários, senão de fazê-la feliz. [20]"
Esse registro feito pelo Ministro Carlos Velloso mostrar-se-ia fundamental para a vida de um jovem estudante universitário residente em Recife, no Estado de Pernambuco. Dois anos depois, em 2007, a vida colocaria o jovem diante de um desafio quase insuperável: buscar a sua felicidade ou sucumbir em face de obstáculos quase intransponíveis para os quais não concorreu de modo algum. Um inocente deveria optar entre lutar ou desistir.
Ainda em 2005, o Ministro Marco Aurélio destacou "o direito do homem à constante busca da felicidade, da realização como ser humano, passando o fenômeno pela reconstrução familiar" [21].
O Ministro Celso de Mello, construindo o alicerce constitucional que ampararia esse postulado universal, discorreu o seguinte:
"o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. [22]"
Recentemente, ainda o Ministro Celso, julgando improcedente a Ação que questionava a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, afirmou que "o luminoso voto proferido pelo eminente Ministro Carlos Britto permitirá a esses milhões de brasileiros, que hoje sofrem e que hoje se acham postos à margem da vida, o exercício concreto de um direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver com dignidade, direito de que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado. [23]"
Esse movimento tem raízes históricas no ocidente e chegou ao Brasil pelos braços da jurisprudência garantista da Suprema Corte. Ele também envolveu positivamente o Congresso Nacional que recebeu, em 2010, duas propostas de emenda à Constituição visando alterar o seu art. 6º para incluir o direito à busca da felicidade no rol dos direitos sociais[24].
A PEC nº 19, de 2010, é de autoria do senador Cristóvan Buarque (PDT/DF). Já a PEC nº 513, de 2010, tramita na Câmara dos Deputados e é de autoria da deputada Manuela d’Ávila. Tanto o senador Cristóvan, quanto a deputada Manuela d’Ávila, registraram na justificação de suas propostas:
Na Declaração de Direitos da Virgínia (EUA, 1776), outorgava-se aos homens o direito de buscar e conquistar a felicidade; na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) há a primeira noção coletiva de felicidade, determinando-se que as reivindicações dos indivíduos sempre se voltarão à felicidade geral. Hoje, o Preâmbulo da Carta Francesa de 1958 consagra a adesão do povo francês aos Direitos Humanos consagrados na Declaração de 1789, dentre os quais se inclui toda a evidência, à felicidade geral ali preconizada.
Esse registro mostra a trajetória histórica do princípio da busca da felicidade e demonstra como ele está presente nos mais importantes documentos libertários e garantidores de direitos fundamentais, a exemplo da própria Declaração de Direitos dos Homens e do Cidadão.
No Brasil, o Ministro Celso de Mello, do STF, ao proferir seu voto na questão do reconhecimento jurídico das relações homoafetivas, registrou que "o direito à busca da felicidade representa derivação do princípio da dignidade da pessoa humana, qualificando-se como um dos mais significativos postulados constitucionais implícitos cujas raízes mergulham, historicamente, na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776".
Para o Ministro Celso de Mello, "o postulado constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais".
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o princípio da busca da felicidade tem sido utilizado como vetor hermenêutico capaz de fornecer um ideal de justiça a inspirar o julgador quando deparado com delicadas questões voltadas para o direito de família.
Um casamento válido foi dissolvido culminando, posteriormente, com ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Na hipótese, o cidadão direcionou "seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses".
Segundo a Ministra Nancy Andrighi, "ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade" [25].
O princípio da busca da felicidade foi utilizado como reforço argumentativo para decidir ação de reconhecimento de união estável post mortem e sua consequente dissolução, tendo ocorrido, no caso, concomitância de casamento válido [26].
Pedido de guarda provisória em favor de menor no seu interesse também ganhou o reforço do princípio da busca da felicidade[27].
O princípio teria encontra marcado com um jovem garoto brasileiro.

Leia mais ...

by Saul Tourinho Leal

Fonte: Jus Navigandi

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário.
Responderei assim que possível.
Grata pela visita!