"Há pouca preocupação em se investigar as circunstâncias históricas nas quais se forjaram os grandes nomes do Direito, bem como suas opções políticas e ideológicas." A afirmação do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e de seu assessor Otavio Luiz Rodrigues Junior, braço direito do ministro em seu gabinete, consta em um livro lançado exatamente com o objetivo de suprir parte dessa lacuna na literatura jurídica nacional.
Os dois lançam na próxima segunda-feira (15/8), em São Paulo, a Autobiografia de Hans Kelsen, o teórico que formatou a estrutura do controle de constitucionalidade concentrado hoje praticado não só no Brasil, mas em várias cortes constitucionais mundo afora. Como escrevem Toffoli e Rodrigues Junior, "a influência de seu modelo de jurisdição constitucional é expressiva até os dias atuais, quando se nota que a França, um país historicamente refratário à intervenção judicial na atividade legislativa, por emenda constitucional de 2008, passou a admitir o controle de constitucionalidade a posteriori".
As anotações dos responsáveis pelo lançamento da autobiografia de Kelsen no Brasil estão em um estudo introdutório de 45 páginas que antecede parte da história da vida de Kelsen contada por ele mesmo. Parte da história porque a autobiografia foi escrita em 1947, quando o teórico tinha 66 anos. Hans Kelsen morreu em 1973, aos 91 anos de idade. Exatamente por isso a introdução se torna importante, já que descreve eventos que não são narrados pelo biografado.
A importância de Kelsen pode ser medida em números. Nos últimos dez anos, foram publicados 26 livros e 51 artigos dedicados integral ou parcialmente ao exame de suas teorias. No Supremo Tribunal Federal, entre 1997 e 2010, foram 52 acórdãos fundamentos em seus ensinamentos. Do total, 37 deles nos últimos dez anos. (Grifou-se).
Os números dizem respeito às referências diretas ao trabalho do teórico. "Mas sempre que se fala em hierarquia das normas ou em jurisdição constitucional, implicitamente se faz referência às teorias de Kelsen", afirmou o ministro Dias Toffoli em conversa com a ConJur sobre o livro. A obra já está na segunda edição e faz parte da Coleção Paulo Bonavides, que trará em breve outros dois livros: A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald Coase, e Direito Constitucional e Direito Privado, de Konrad Hesse.
A estrutura do texto da autobiografia de Kelsen é agradável até mesmo para os leitores menos íntimos com as letras jurídicas por conta do estilo do teórico, que escreve de maneira mais "latina", como os austríacos costumam escrever a língua alemã. A leitura também é facilitada pela qualidade da tradução para o português, feita por Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Gabriel Dias é representante no Brasil do Instituto Hans Kelsen, autarquia federal do governo austríaco presidida pelo Chanceler da República.
Entre as curiosidades com as quais os leitores são brindados, está o fato de Kelsen ter ajudado a pagar para que seu primeiro livro de destaque fosse publicado. O editor considerou a obra Principais Problemas da Teoria do Direito Público, desenvolvidos a partir da Teoria da Norma Jurídica muito teórica. Logo, tinha baixo poder de comercialização.
O ministro Toffoli lembra outra passagem, em que Kelsen confessa que preferia estudar filosofia, história e literatura a assistir às aulas do Direito. "Ele conta, como todo estudante sabe, que há aulas que valem à pena e aulas que não valem. E faz menção a um professor. 'Logo eu percebi que era melhor ler o manual dele porque a aula era a repetição do manual."
Pitoresco também é o fato de o maior teórico do Direito do Século XX ter terminado a vida lecionando em uma faculdade de Ciência Política, na Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA). Na Primeira Guerra Mundial, graças a uma sucessão de acasos e acidentes de percurso, Kelsen assume o posto de consultor jurídico do Ministério da Guerra, talvez o mais importante naquele grave momento de crise.
"É a partir daí que se percebe que Hans Kelsen teve uma vivência política importante e uma capacidade incomum de antever os acontecimentos", afirma Dias Toffoli. "Ao contrário do que dita o senso comum, ele era uma pessoa muito atenta ao mundo político. Vivia esse mundo, atuava nesse mundo e demonstrava uma perspicácia incrível nas relações humanas", conta o ministro do STF.
Com honestidade ímpar, Hans Kelsen escreve que sua passagem pelo Ministério da Guerra foi decisiva para receber o convite de ingressar na cátedra austríaca: "Não duvidei que a atitude de Bernatzik (seu antigo professor na Universidade de Viena) tivesse sido determinada de modo decisivo pela minha posição no Ministério da Guerra. Esta causou sobre ele uma impressão maior do que todas as minhas publicações anteriores."
Talvez o ponto mais alto na história de vida do teórico tenha sido o convite, feito em 1919 por Karl Renner, chanceler do governo provisório da República da Áustria, para redigir a Constituição austríaca de 1920. É aí que Kelsen forja o controle concentrado de constitucionalidade e transformar a Corte Imperial em Corte Constitucional. De acordo com suas palavras, "a primeira desse tipo na história do Direito Constitucional, pois até então nenhuma corte havia recebido competência para revogar leis por motivo de inconstitucionalidade com efeito geral e não restrito ao caso particular".
Criada a Corte Constitucional da Áustria, Kelsen passa a integrá-la. Foi juiz da Corte Suprema austríaca por dez anos e fez nascer a ideia de que as cortes constitucionais é quem devem ser as guardiãs da Constituição, e não o Poder Executivo, no caso, o chanceler, como defendia o filósofo nazista Carl Schmitt. A autobiografia, aliás, descreve alguns dos embates entre Kelsen e Schmitt.
Com a ascensão nazista, Hans Kelsen foge para Viena e, de lá, para Genebra. Foi um dos primeiros professores universitários a serem demitidos pelo governo nazista. Como registra o ministro Toffoli, "Kelsen soube de sua demissão pelo jornal" e logo percebeu que tinha de partir. "É necessário fazer um regresso a Kelsen, principalmente em um momento em que o Judiciário é acusado de certo ativismo. Ele nos ensina, por exemplo, que a jurisdição constitucional tem de se auto-limitar porque nenhum outro poder pode limitá-la", afirma o ministro Dias Toffoli. "Kelsen lembra aos juízes, principalmente aos juízes constitucionais, que eles têm de se submeter à Constituição", conclui. (Grifou-se).
O ministro Dias Toffoli também destaca que o livro desmitificará a ideia de que Kelsen seria um conservador, quando na verdade ele próprio se define liberal. Outro ponto que o ministro destaca é a preocupação de Kelsen com a divulgação e a manutenção de sua escola na Europa, no Japão e na América Latina. O livro narra uma pouco conhecida viagem de Kelsen a Argentina, Uruguai e Brasil, onde proferiu palestras no Rio de Janeiro.
A Autobiografia de Hans Kelsen, que já está em sua segunda edição, será lançada na segunda-feira (15/8), na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na Universidade de São Paulo, a partir da 19h. Dia 24 de agosto, o lançamento será feito em Brasília, na biblioteca do Supremo. O livro foi publicado pela Forense Universitária e pode ser adquirido por meio do site da editora.
ServiçoAutobiografia de Hans KelsenEditora Forense Universitária
2ª edição
144 páginas (mais 45 do Estudo Introdutório)
R$ 35,00
2ª edição
144 páginas (mais 45 do Estudo Introdutório)
R$ 35,00
Rodrigo Haidar é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2011.
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