domingo, 31 de julho de 2011

A constitucionalização da felicidade

O que é a felicidade? E, como é possível alcançá-la? Essas perguntas não são inéditas.
Segundo o dicionário Aurélio, felicidade é a qualidade ou estado de feliz; ventura, contentamento, bom êxito, sucesso.
Na era da internet, para o Wikipédia, "a felicidade é um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em que o sofrimento e a inquietude estão ausentes", tendo, ainda, o "significado de bem-estar espiritual ou paz interior."
Para o filósofo Aristóteles "felicidade é ter algo o que fazer, ter algo que amar e algo que esperar." Essa referência nos confirma que a tentativa de se identificar o que é esse sentimento tão especial é um problema de longa data... Seguramente, até o momento ainda não resolvido.
Para os poetas, esse é um tema sempre presente. Nas palavras dos incomparáveis Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, a "felicidade é como uma gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranqüila, depois de leve, oscila e cai como uma lágrima de amor", sendo que, para esses músicos, a "tristeza não tem fim, felicidade sim." (A Felicidade)
Poderíamos continuar com citações, pensamentos, músicas, reflexões em geral sobre a questão da felicidade, tão recorrente ao longo dos séculos, sem nunca conseguirmos chegar a uma resposta objetiva, direta e precisa sobre o que é, de fato, esse tão badalado substantivo. Duas características merecem destaque: trata-se de um conceito altamente subjetivo (pessoal, individual) e passageiro (transitório).
Não há dúvida de que as necessidades a serem supridas para fins da felicidade são diferentes, de pessoa a pessoa. Uma casa, uma viagem, um amor, um objetivo alcançado, a contratação para um trabalho, ser agraciado com o primeiro sorriso do filho, depois vê-lo entrar na faculdade, uma vida de comercial de margarina... enfim, impossível identificar todos esses possíveis fatores motivadores da felicidade. Além disso, talvez o mais apropriado seja se falar em "estar feliz" e não em "ser feliz", uma vez que não se é feliz por todos os momentos da vida, ininterruptamente.
Pois bem. O que nos motiva a essas reflexões é a existência de uma Proposta de Emenda à Constituição Federal nº 19, de 2010, em trâmite no Senado Federal, de autoria do respeitado senador Cristóvão Buarque que "altera o artigo 6º da Constituição Federal para incluir o direito à busca da Felicidade por cada individuo e pela sociedade, mediante a dotação pelo Estado e pela própria sociedade das adequadas condições de exercício desse direito." É a chamada "PEC da Felicidade"!
A alteração proposta afeta o artigo 6º, da Constituição Federal, o qual passaria a ter a seguinte redação: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
Ou seja, segundo o autor dessa proposta, o caminho para a felicidade passa pela conquista da educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Seria, então, esse conjunto, pois, a fórmula mágica para se atingir a felicidade, tão almejada ao longo dos séculos e nunca decifrada. E, todos esses ingredientes, frise-se bem, obtidos a partir de preceitos já fixados constitucionalmente e, na sua grande maioria, a cargo do Estado.
Da justificativa apresentada para o Projeto, é necessário destacar alguns trechos: "a expressa previsão do direito do indivíduo de perquirir a felicidade vem ao encontro da possibilidade de positivação desse direito, ínsito a cada qual. Para a concretização desse direito, é mister que o Estado tenha o dever de, cumprindo corretamente suas obrigações para com a sociedade, bem prestar os serviços sociais previstos na Constituição.
A busca individual pela felicidade pressupõe a observância da felicidade coletiva. Há felicidade coletiva quando são adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade, ou seja, justamente os direitos sociais - uma sociedade mais feliz é uma sociedade mais bem desenvolvida, em que todos tenham acesso aos básicos serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer, dentre outros.
Evidentemente as alterações não buscam autorizar um indivíduo a requerer do Estado ou de um particular uma providência egoística a pretexto de atender à sua felicidade. Este tipo de patologia não é alcançado pelo que aqui se propõe, o que seja, repita-se, a inclusão da felicidade como objetivo do Estado e direito de todos."
Está, ainda, informado, que esse mesmo direito constitucional (à felicidade) está garantido nas cartas magnas do Reino do Butão (!), Japão e Coréia do Sul.
Com todo respeito ao conceituado Senador Cristóvão Buarque, aprovada essa PEC, tratar-se-á de mais uma norma inócua, sem efeitos concretos, a ser diariamente desrespeitada. É pura ilusão imaginar que a positivação de uma norma desse calibre vai ser suficiente, por si só, para que o Estado brasileiro passe a cumprir com suas obrigações sociais em sua plenitude, o que "nunca antes na história desse país" (parafraseando nosso ex-presidente Lula) foi feito.
A felicidade é um direito ínsito ao ser humano, desde o seu nascimento, com ou sem a participação do Estado. Não há que se confundir direitos sociais com felicidade, nem se pode pretender equipará-los. De mais a mais, não há como negar - apesar dessa não ser a intenção, ao que parece - que a eleição dos próprios "ingredientes" para a felicidade, aqui previstos, é altamente subjetiva. Por que, por exemplo, não indicar a proteção aos jovens e à velhice nesse rol?
Transportando essa proposição para o direito tributário, o cidadão contribuinte brasileiro certamente seria muito mais feliz se tivesse respeitado o seu direito de ter uma carga tributária justa, com observância real à sua capacidade contributiva (direito constitucionalmente já garantido). Seria muito mais feliz ainda se tivesse, por parte do Estado, a efetiva contrapartida pelos impostos pagos. (Grifos Nossos). Vale dizer, se tivesse em troca da sua colaboração financeira aos cofres públicos suas necessidades básicas atendidas, seja na moradia, educação, saúde, transporte, segurança. Não é uma mera previsão abstrata e fria da lei, por mais que seja do texto maior de um país, que vai alterar essa ausência, essa omissão reiterada do Estado, que desvirtua a finalidade essencial de suas despesas e emprega mal o dinheiro da sociedade.
Que os nossos legisladores usem seu tempo para buscar alternativas concretas, eficazes para os problemas brasileiros. Que legislem. Na parte tributária, que limitem o uso ainda desenfreado de medidas provisórias, que as votem, que as rejeitem; que se autorizem deduções legítimas na apuração do imposto de renda; que se encontrem soluções para acabar com a guerra fiscal para trazer mais segurança jurídica aos contribuintes do ICMS nos Estados; que se respeite o princípio da seletividade para fins de incidência do ICMS e do IPI. Enfim, há muito o que fazer, em termos concretos e objetivos. O contribuinte brasileiro será feliz quando seus direitos já previstos na Constituição Federal, forem, de fato, respeitados; quando puder ter segurança jurídica dos seus atos; quando puder andar lado a lado do Poder Público, e não em sentidos opostos, ambos com as mesmas finalidades: uma contribuição mútua, cada qual com a sua parte, para o atendimento das necessidades individuais e sociais hoje já previstas no texto constitucional.
A questão é de cultura, e, essencialmente, de consciência da "coisa pública". O Brasil ainda é um país jovem, comparativamente às economias ditas desenvolvidas, tem muito a aprender, haja ou não a "felicidade coletiva", como pressuposto para a "felicidade individual".
Afinal, para o pai da psicanálise, Sigmund Freud, "a felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz." E, no plano espiritual, Mahatma Gandhi, com sua sapiência e bom senso, asseverou que "não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho."
Deixemos, pois, o Estado fora disso.
Heloisa Guarita Souza é advogada, Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP.

Fonte: Paraná Online, Caderno Direito e Justiça

Disponível em: http://www.parana-online.com.br/colunistas/237/87157/. Acesso em: 31 jul. 2011.


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