domingo, 31 de julho de 2011

Sujeito de direito, locus epistemológico e antropocentrismo

Recomendo a leitura deste bem escrito artigo!
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Ao iniciarmos esta breve reflexão sobre o locus epistemológico ocupado pelo sujeito no âmbito do Direito, a primeira questão que se nos apresenta remonta ao conceito de centro. Desde antigas descobertas da Astronomia e, mais especificamente, depois do telescópio Hubble, sabemos que não estamos no centro do sistema solar, nem da via láctea e muito menos do universo. O Hubble confirmou, mas a nossa posição fora do centro já havia sido estabelecida, teoricamente, na Astronomia, na Biologia e na Psicanálise. Nós não estamos no centro, nem na origem das espécies, nem sequer temos controle sobre o nosso inconsciente.
O curioso é que as imagens do Hubble, embora de áreas longínquas, são feitas a partir de um ponto muito próximo a nós (órbita terrestre), ou seja, ainda assim nossa visão é antropocêntrica.
No entanto, o homem permanece no centro do Direito, por meio do conceito de sujeito de direito, que está cada vez mais inflado, com os direitos da personalidade e os direitos humanos.
Na idade média, não havia sujeito de direito. No racionalismo francês ele surge, mas é fragmentado, sob influência cartesiana. Agora está expandido, mas permanece em uma posição central no Direito, como se equivalesse racionalmente a "indivíduo" - ou melhor: como se todo indivíduo fosse um "sujeito de direito", o que é bastante conveniente para o coroamento jurídico da igualdade formal pós-Ancien Régime. Isso nos faz indagar se o direito ainda é antropocêntrico, mesmo nos dias atuais.
Por outro lado, sabe-se que há uma tendência de convergência para o centro, que é própria do cérebro humano, conforme relatos da Neurociência. Há também estudos em Estética sobre o gosto e a tendência para o centro.
Este escrito propõe-se a imaginar deslocamentos do sujeito de direito para outros loci, num ambiente de complexidade, tendo-se em vista que a sociedade é complexa. Considere-se que na complexidade não existe centro. Assim como na pós-modernidade não há espaço para os "grandes relatos", como diria Lyotard, numa sociedade complexa não existe espaço para um só centro.
Em face da complexidade social e da virtualidade gerada pelas novas tecnologias, ressurge a questão do antropocentrismo diante do conceito de sujeito de direito: o cibersujeito é justamente o sujeito descentrado. Qual é o domicílio do cibersujeito? Como poderia ser "o lugar onde estabelece a sua residência (?) com ânimo definitivo" (art. 70 do Código Civil)? O cibersujeito não tem residência, nem nada de definitivo (resta-lhe o animus, justamente a vontade, essencial para os institutos do direito privado, a partir do Iluminismo). Ele não está aqui nem ali, mas difuso na web, não está no centro de nada porque a web (como toda e qualquer "rede", trata-se de questão conceitual) não tem um centro. A internet é justamente a difusão descentralizada, onde atua o cibersujeito descentrado. Para o que denominamos de "ambiente da complexidade", Lyotard caracteriza como pós-modernidade, na qual tudo está conectado.
Na complexidade do ambiente virtual, pode-se imaginar também que o sujeito de direito multiplica-se infinitas vezes, como nas simetrias de Escher. Assim, como pode estar ele no centro epistêmico do Direito?
Tais questões nos levam a indagar se a posição do sujeito no centro do Direito pode ser entendida como um viés antropocentrista e anacrônico. O antropocentrismo realiza muitas estratificações e a racionalidade, com todo seu poder, justifica muitas intervenções... cruéis. Isto porque tão logo se coloque o "centro" de uma racionalidade, ou, pior ainda, de um padrão de homem ou humanidade (e daí as críticas todas sobre a "natureza humana") - e sabemos que toda teoria social é cheia de criptoantropologias -, tudo gravita em torno deste centro, de modo que se criam convicções verdadeiramente normativas do que se deve manter ou não, sempre a partir do que o centro informa. Assim, os homens se distinguem de tal modo entre si que alguns traços permitem subjugar, objurgar irracionalmente e, o pior, expurgar os outros. (por isso a baliza da alteridade é inafastável como fundamento ético).
Pensamos que o Direto, mais do que calcado (centrado) no sujeito de direito (ou, apenas, nele), se baseia (ou "deveria se basear") em um modo próprio, coletivo, de se fazer uma antropologia filosófica: uma noção histórica. Assim, se não temos muita salvação de nossa historicidade (que sempre nos impõe uma posição em um sistema de tempo e espaço), que, ao menos, ela seja, talvez não "evoluída", mas, quem sabe "acumulativa", entendendo-se a acumulação em alguma medida de empirismo ou correção em sua feitura.
A nossa realidade jurídica é impressionante. O sujeito de direito é uma categoria inflada: direitos de personalidade, fundamentais, humanos, entre outros, são pontos sem os quais não se tem como pensar uma realidade vista pelo prisma jurídico. Contudo, mesmo assim, com um sujeito de direito bem delineado e, ademais, inflado de normatização, encontramo-nos em uma situação de certa aberratio de antropocentrismo. É como se este sujeito de direito estivesse muito estático.
Sobre o conceito de centro, pode-se tomar outros centros como referência, não apenas o gravitacional, mas de massa, perspectiva (e de rotação). Em qualquer dos casos, realmente a ideia de centro traz ínsito um certo teor de núcleo que, por sua própria força gravitacional, centrípeta, atrai tudo para si e, com isso, distorce, desvia, desfigura, ou seja, altera a natureza do que é periférico. É interessante pensar que aquilo que ordena também desnatura.
Ressaltamos que mantemos apreço relativo pela ideia de sujeito de direito, muito embora reconheçamos que ela é um tanto instável e limitada, eis que histórica. O que parece mais complicado é justamente a pretensão desta ideia em firmar "centros" em uma realidade essencialmente difusa. A intenção pode ser boa, mas os efeitos, sobretudo a longo prazo, podem ser talantes, porque "alguém sempre fica de fora nisso tudo", quanto mais se o intérprete for mais obtuso; aliás, o corte é diretamente proporcional à obtusidade da visão do intérprete.
Mesmo assim, é oportuno lembrar a ideia do José de Oliveira Ascensão: "não se parte da regra para a pessoa, mas da pessoa para a regra, porque aquela é prévia à valoração positiva" - aqui vai um respiro hermenêutico no problema. Se, ainda como diz este mesmo autor, a ideia de pessoa é fim do Direito, bem como fundamento da personalidade jurídica e marco para o sujeito de situações jurídicas (entendendo que "toda pessoa é sujeito, e é por ser sujeito que se designa pessoa", e que pessoa é, nas linhas de Kelsen, "unidade de um complexo de normas", o problema antropológico (e aqui defendemos: necessariamente antropológico nas linhas da antropologia filosófica) parece ser uma saída - ou melhor: uma entrada para novas questões - tal como a ideia de "hermenêutica" tem sido uma saída (entrada...) dos problemas de positivismo.
Aliás, neste ponto, é oportuno contrapormos a geometria espacial com a perspectiva construída no cerne das artes visuais, que em muito se valeu dos conhecimentos matemáticos, sem os quais seria inimaginável enquanto produto histórico, mas que os assimilou em uma tentativa de acesso ao real e representação largamente entrelaçado a outras variáveis perceptivas e cognoscitivas.
Sugerimos que se amplie o debate das questões sobre o centro, de maneira interdisciplinar, mais propriamente com o auxílio das artes visuais, por exemplo, sobre a perspectiva, técnica que já aparecera em nossos escritos sobre simetria no Direito. O mais interessante da perspectiva é que ela é farta de referenciais hermenêuticos, justamente pela noção de ponto de vista, outro conceito que a compõe e que ajuda a verificar mesmo a "visão de mundo". São interessantes as metáforas advindas das noções de perspectiva e projeção, porque elas se rendem a uma complexidade que a geometria, a priori, não contempla, por força de seus objetos próprios e de sua finalidade matemático-descritiva (mesmo quando espacial, a geometria se calca na medida da representação plana, enquanto a perspectiva quer captar a espacialidade das coisas (inclusive, afetadas pelo sujeito, pelo olho, que as percebe!).

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Eliseu Raphael Venturi é Licenciado em Artes Visuais pela Faculdade de Artes do Paraná, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba, Especializando em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal do Paraná e Advogado.

Maria Francisca Carneiro é Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Pós-doutora em Filosofia (Estética Analítica) pela Universidade de Lisboa.

 
Laércio A. Becker,é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

 
Fonte: Paraná Online, Caderno Direito e Justiça.

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